O escultor uruguaio que veio testar velas de aço no Tejo

Gonzalo Ramírez começou por trabalhar pedra, depois madeiras, agora usa aço inoxidável. Em Punta Del Este, onde vive, esculturas gigantes junto ao mar tornaram-no famoso. Gostava de ter uma em Lisboa, para fazer ponte entre Portugal e o Uruguai.
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A chuva forte é inesperada, e o dia cinzento escondeu o azul do Tejo, mas o uruguaio Gonzalo Ramírez mantém-se fiel à ideia da fotografia para este artigo: mostrar as suas esculturas em aço inoxidável, que lembram velas, aqui em Lisboa, perto de Belém, de onde há séculos os navegadores portugueses partiram à descoberta do mundo.

"Conhecemos bem a história de Portugal. As ligações históricas com o Uruguai são muitas, como Colónia de Sacramento que ainda tem vestígios da arquitetura portuguesa", diz o escultor, um nome consagrado no seu país e com projeção também além fronteiras. Um conjunto de obras do artista esteve em exposição sob o nome "Del otro lado del Espacio" na sede do Instituto Cervantes, perto da avenida da Liberdade.

Nascido em 1962 em Montevidéu, capital uruguaia cujo nome soa a português e é atribuído a Fernão de Magalhães (que chegou a pensar que o Rio da Prata era o Estreito a ligar Atlântico e Pacífico), Ramírez conta ter crescido numa família ligada aos negócios mas com muitos interesses culturais e por isso sempre teve tendência para as artes e contou com o incentivo dos pais para uma profissão que, admite, "é socialmente arriscada".

Estudou na Escola Nacional de Belas Artes do Uruguai e pouco a pouco foi afirmando-se como escultor: "trabalhei vários materiais antes do aço. Comecei com pedra, depois ferro, madeiras duras várias da selva do Brasil e da selva do Paraguai, sempre a experimentar. Este gosto pela criação tenho-o desde criança, desde muito jovem".

Conta o artista uruguaio que gostava de ver em Lisboa uma escultura sua junto ao Tejo ou então mesmo na costa portuguesa, mirando o oceano. Estas que expôs agora em Lisboa, numa iniciativa patrocinada pela embaixadora do Uruguai, Brígida Scaffo, são pequenas, umas dezenas de centímetros, aquilo a que Ramírez chama de "esculturas maquetes", mas outras podem ter vários metros de altura, "três, seis, dez ou mais".

Ganhar a vida com a arte é difícil, mesmo num país como o Uruguai em que existe uma grande sede de cultura por parte da população, pois com 3,5 milhões de habitantes o mercado é pequeno. "Uns anos ganha-se mais, noutros menos, mas consigo viver da minha arte. Por viver em Punta del Leste, visitada por muitos norte-americanos e europeus, tenho clientela estrangeira. E o meu projeto de escultura pública mostra a minha obra a quem visita o litoral. É como se fosse um exposição permanente. Foi doação minha. Quero com a minha arte criar pontes culturais entre as pessoas. E o uso do inoxidável é aqui importante por causa da proximidade do mar, do salitre", diz o escultor, que pela primeira vez visita Portugal e aprecia as afinidades, tanto na paisagem como nas pessoas.

Ramírez orgulha-se da estabilidade que marca o seu país, e que contrasta com a agitação que se vive hoje em vários pontos da América do Sul. Afirma que o maior problema dos latino-americanos é a desigualdade, o haver gente muito rica e muita gente pobre, e que "as redes sociais permitem hoje às pessoas dizerem o que antes tinham medo de dizer e por isso muitas vezes estas contestações surgidas de repente". Acrescenta que "no Uruguai, temos a sorte de viver num país que historicamente é uma república democrática muito estável, com os seus altos e baixos, como foi a ditadura há 40 anos, que deixou algumas feridas por sarar, mas onde há consciência da necessidade de convivermos em paz".

Sobre Pepe Mugica, o político uruguaio de esquerda que já foi presidente e tinha a fama de ser o chefe do Estado mais pobre do mundo, pelo estilo de vida austero, o escultor nota que "sim, vive de forma muito humilde, mas não é uma pessoa pobre. É uma opção de vida humilde e boémia. E filosoficamente isso tem a sua explicação".

Ramírez tem ainda entre as suas obras uma escultura em homenagem a José Artigas, que no início do século XIX liderou a luta pela independência do Uruguai, então colónia espanhola.

Depois incorporado efemeramente no Império Português, o Uruguai, a província Cisplatina do Brasil independente, acabou por beneficiar de uma inconclusiva guerra entre brasileiros e argentinos para conquistar de vez a sua independência. Juntamente com o Chile e a Argentina, faz parte do trio de países com melhor nível de desenvolvimento da América do Sul.

Admirado com o nível de desenvolvimento de Portugal, Ramírez admite que "faltam ainda uns anos para o Uruguai lá chegar, mas sou um otimista". A exposição "Del otro lado del Espacio" segue agora para outras cidades europeias.

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