O donzelo de Lourdes

Mathieu Amalric protagoniza um simpático musical sob o signo de Jacques Demy. <em>Tralala</em>, dos irmãos Larrieu, vai até Lourdes para contar a aventura de um músico à procura da Virgem Maria.
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Aqui e ali vão surgindo provas de que a tradição do musical luta para sobreviver num tempo que já não é o seu. O mais recente exemplo a chegar à nossas salas é este Tralala, gesto curiosíssimo na sua ousadia de manter os códigos clássicos de tal género cinematográfico - em que as personagens cantam as falas espontaneamente, sem restrições de contexto -, mas com algumas fragilidades na estrutura e substância. Uma vez que cinema dos irmãos Arnaud e Jean-Marie Larrieu não tem um grande historial na distribuição portuguesa (trata-se apenas do segundo filme a estrear por cá, depois de Pintar ou Fazer Amor, de 2005), esta será uma oportunidade para descobrir ou reencontrar a sua marca de comédia mais ou menos desencantada.

A personagem titular é composta por Mathieu Amalric, adequadamente em modo cândido e pasmo, um músico de rua sem horizontes que se vê apanhado numa espécie de milagre. Começamos por encontrá-lo em Paris, uma figura errante armada de guitarra e amplificador, a cantar canções poucos inspiradas quando se cruza com uma jovem vestida de azul que, para além de todo o mistério da sua presença, o deixa com a recomendação "Acima de tudo, não sejas tu mesmo" e um isqueiro de Lourdes. Uma frase e um item, duas pistas, que o fazem sair de uma inexistente zona de conforto e ir até essa pequena cidade dos Pirenéus, local de peregrinação, à procura da dita rapariga - esta com o rosto de Galatéa Bellugi, que no filme A Aparição (2018), de Xavier Giannoli, interpretava uma jovem supostamente visitada pela Virgem Maria.

Essa primeira parte algo deslavada de Tralala dá depois lugar a uma aventura sugestiva com um quê de espiritual: uma vez em Lourdes, o cantor é confundido com o filho desaparecido da proprietária de um hotel, que o lança numa série de reencontros com pessoas do seu passado, desde o irmão (o cantor rock Bertrand Belin, um dos colaboradores da banda sonora) até uma antiga namorada (Mélanie Thierry), a qual dá conta do engano mas não deixa de se sentir atraída pelo ingénuo desconhecido...

No meio do enredo familiar que ganha forma, Tralala, a personagem, permanece como um ser quase santo num jogo de aparições que os Larrieu tentam que faça sentido no cenário fantasioso dessa sua terra natal. E a verdade é que há aqui um ar dos musicais de Jacques Demy, no diálogo entre a cidade e a província, embora o peso da influência do realizador de As Donzelas de Rochefort não vá muito além de esporádicas combinações de cor e graciosidade, como acontece numa bela sequência a solo de Mélanie Thierry, a atirar aos nossos olhos o despudor romântico dentro de uma loja de souvenirs religiosos.

Não há dúvida de que o aceno criativo dos Larrieu traz qualquer coisa de refrescante ao panorama, ainda para mais com um elenco sólido que inclui também Denis Lavant e Maïwenn. Mas não passa despercebida a instabilidade tonal do filme, com momentos irrelevantes a intercalar com cenas mais conseguidas, à procura de um toque melodramático nunca inteiramente concretizado. Enfim, um devaneio modesto que satisfaz o apetite de cinema popular, sem os disparates do costume.

dnot@dn.pt

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