O confinamento em forma de arte: João Francisco Vilhena inaugura exposição “Diário das Nuvens” em Lisboa
Quando a pandemia da Covid-19 isolou todos em casa em meados de fevereiro de 2020, a dupla de amigos formada pelo artista visual João Francisco Vilhena e pelo escritor e jornalista João Paulo Cotrim (1965 - 2021) resolveu transformar o duro momento em arte.
Quatro anos depois, é a partir desta quinta-feira (27) que o projeto que surgiu de um diálogo entre imagens e palavras, estabelecido entre Vilhena (fotos) e Cotrim (poemas) poderá ser visto pelo público com a exposição Diário das Nuvens a entrar em cartaz na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), em Lisboa.
A génese do projeto remonta a uma troca de correspondências entre os dois amigos. “Nós éramos amigos há muitos anos e tínhamos muitas ideias para trabalhar juntos, que não conseguimos concretizar. Antes da pandemia, começámos a trocar imagens e textos por correio, numa tentativa de recuperar essa ideia romântica de enviar cartas e postais”, explica Vilhena, em entrevista ao DN.
Com o confinamento, essa troca evoluiu para um diário digital: durante 80 dias, o fotógrafo captava imagens de nuvens com o telemóvel, em diferentes momentos do dia, e enviava-as para Cotrim, que respondia com um poema. O resultado é uma narrativa visual e poética sobre um tempo em que o mundo se viu suspenso e a única constância para a dupla eram as nuvens, “testemunhas silenciosas” da inquietação global.
“Vivíamos os dois em andares altos, portanto, tínhamos uma visão muito bonita, tanto eu das minhas janelas como ele, do céu e das nuvens. Tínhamos os dois uma grande paixão por nuvens e chegamos à conclusão que seria bonito as utilizarmos como testemunha: desde que há mundo e que há universo, há nuvens, no fundo elas são os olhos da atmosfera, os olhos do céu” reflete o artista.
As imagens e textos foram publicados online e rapidamente guiaram o projeto a novos voos, como o lançamento em livro (editora Abysmo, 2021) e que agora culminam na exposição na SNBA. “Foi lindo perceber que o projeto durou exatamente 80 dias, como no livro de Júlio Verne, A Volta ao Mundo em 80 Dias. Há aqui este número mágico”, comenta Vilhena.
Já a escolha do telemóvel como ferramenta de captura não foi arbitrária. Para Vilhena, o dispositivo representa tanto a efemeridade da imagem na era digital quanto a democratização da fotografia. “Hoje em dia fotografamos tudo, mas deixamos de fixar as imagens como objeto físico. Eu queria que esse diário fosse feito com o olhar de um cidadão comum, alguém que observa o céu da sua janela e registra o que vê.”
A limitação técnica do telemóvel também foi um elemento explorado artisticamente: “O grão da imagem, os pixels, tudo isso me permitiu brincar com a materialidade da fotografia, fazendo um paralelo entre o analógico e o digital.”
Para o artista, a relação entre tempo e memória é um dos eixos centrais do projeto. “No confinamento, o tempo perdeu a sua estrutura habitual. De repente, os dias pareciam todos iguais, e a única coisa que mudava era o céu”, reflete Vilhena. As nuvens, em sua mutabilidade constante, tornaram-se um símbolo da passagem do tempo e, ao mesmo tempo, uma espécie de espelho emocional do período. “Tivemos dias de céu azul, dias carregados de nuvens negras, dias de chuva... Tudo isso se refletia no que estávamos a sentir.”
Além da fotografia e da poesia, Vilhena revela que a exposição que inaugura hoje na SNBA ainda inclui vídeos que reforçam a dimensão da experiência. O artista criou filmes em que as nuvens ganham uma nova camada narrativa através de leituras interpretadas por Elisabete Caramelo, ex-locutora da TSF e atualmente na Fundação Gulbenkian, e José Anjos, do Lisbon Poetry Orchestra. "Era importante que as pessoas ouvissem o que o João estava a escrever", conta o artista, indicando que as leituras foram ajustadas meticulosamente ao ritmo das imagens, criando uma fusão entre palavra e movimento.
Já a trilha sonora destes vídeos ficou a cargo do músico Pedro Oliveira, vocalista e guitarrista da banda Sétima Legião, com quem Vilhena já vinha desenvolvendo colaborações entre imagem e som. "Criamos filmes com nuvens onde se ouvia a voz do João na voz de Elizabeth e do Anjos, e a música do Pedro ajudava a dar uma outra dimensão à experiência", explica.
O artista relembra que a parte audiovisual do projeto havia surgido quando o mesmo chegou aos médicos e enfermeiros, os que estavam na linha de frente daquela batalha e que encontraram no trabalho de Vilhena e Cotrim um momento de pausa e contemplação durante os dias intensos da pandemia. “O João tinha muitos amigos médicos, enfermeiros, que ficavam muito comovidos com os textos deles e com as minhas imagens, e perguntaram-nos se era possível terem filmes, se conseguíssemos fazer filmes para que eles, de alguma maneira, pudessem passar nas suas salas quando eles estavam num período de descanso. Foi um período que custou muito para todos do meio”, sublinha.
Segundo Vilhena, o diário também gerou um movimento espontâneo nas redes sociais, com pessoas de diferentes partes do país enviando imagens de nuvens captadas em suas próprias rotinas. "Foi muito bonito ver desconhecidos partilhando as suas próprias nuvens, como se fossem mensagens silenciosas de esperança e conexão", relembra.
No dia 13 de março, duas semanas após a inauguração do Diário das Nuvens, um momento especial terá lugar na exposição, dedicado à leitura dos poemas de Cotrim, que completaria 60 anos nesta data. “Gosto de falar que é quando ele completa, não completaria”, comenta Vilhena, que tinha Cotrim, uma das vítimas da pandemia, como um de seus grandes parceiros de vida.
“Tive que esperar algum tempo para fazer essa exposição”, revela o artista que também neste ano comemora os seus 60 anos de vida. “O projeto cresceu ao ponto que chegamos a pensar em fazer um festival em que o tema fosse nuvens, com literatura, artes plásticas e outras disciplinas artísticas, até que o João Paulo adoeceu, foi para os cuidados intensivos e a partir daí já não consegui comunicar mais com ele. No dia a seguir ao Natal de 2021, ele veio a falecer. A família foi-se abaixo, eu também, enquanto amigo que o tinha desde a adolescência, fui-me abaixo e fechei todo o projeto que eu tinha construído com o João”, explica.
Passado alguns anos, João Francisco Vilhena enfim deu continuidade ao que tinha construído com seu grande amigo através da exposição que inaugura nesta quinta-feira na SNBA, “sua segunda casa”, como gosta de dizer. Para o artista, Diário das Nuvens não é apenas um registro visual de determinado período, mas um convite à contemplação e à memória de um tempo, uma era e uma amizade. “As nuvens foram a nossa metáfora para o que se passava cá embaixo e elas continuam lá, testemunhando outras histórias, outros tempos. Convido-vos a olharmos para elas juntos”, finaliza o artista ao chamar o público para sua mais nova exposição.