O cavaleiro (ou o filme) sem cabeça

Revisitação mística do imaginário arturiano, <em>A Lenda do Cavaleiro Verde,</em> de David Lowery, é matéria virtuosa para o grande ecrã. E pouco mais do que isso.
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Quem viu e apreciou História de um Fantasma (2017), um filme tão singular na abordagem do amor e da perda que por cá nem passou pelas salas, indo direto para DVD, saberá que o americano David Lowery é um realizador capaz da maior sensibilidade artística. E, no entanto, não é bem um "autor" de nicho - assinou para a Disney o remake de A Lenda do Dragão (2016) e dirigiu Robert Redford no brilhante O Cavalheiro com Arma (2018), em ambos preservando um gosto clássico com íntimas notas modernas. É por aí que se pode analisar também A Lenda do Cavaleiro Verde, este baseado num poema medieval (Sir Gawain and The Green Knight) que conta a aventura de um sobrinho do rei Artur.

Aventura é, de qualquer modo, uma palavra pouco adequada para descrever a fantasia do filme, que evita entrar por demonstrações de bravura, antes procurando na contemplação do caminho um significado. Gawain, interpretado por Dev Patel, é um jovem que agarra a sua oportunidade de alcançar a glória eterna quando o tal Cavaleiro Verde do título propõe um desafio diante do rei Artur: quem aceitar cortar-lhe a cabeça, dali a um ano seguirá viagem até à sua "capela verde", para que o Cavaleiro decapitado devolva o mesmo golpe... Gawain, com sede de honra, sela o seu destino e passado um ano faz a jornada para cumprir o acordo.

O que nas mãos de outro realizador seria uma acumulação de atos heroicos, em Lowery é um conto místico à volta da masculinidade, com personagens crípticas que dão impulso ao feitiço de uma estética e atmosfera, como sempre, bem acompanhadas pela banda sonora do fiel colaborador Daniel Hart. Acontece que, desta vez, o encanto visual, digníssimo do grande ecrã, não corresponde a um saldar de expectativas. Quer dizer, é como se fosse um facto matemático que estamos perante uma obra admirável, mas, ao mesmo tempo, estéril na construção de um qualquer sentimento romanesco. Fica a fibra do poema, uma consciência plástica e um aceno ao "algo mais" que poderia ter sido A Lenda do Cavaleiro Verde pela lente deste realizador cheio de méritos. Um filme esbelto mas sem cabeça.

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