O Tivoli era novinho em folha, e uma das salas de cinema mais requintadas da capital, quando a 12 de dezembro de 1927, estreou o filme do alemão Robert Wiene, O Cavaleiro da Rosa, a partir da ópera homónima de Richard Strauss. Mas a obra não agradou particularmente ao crítico do Diário de Lisboa, ainda triste com o facto de não ter estreado em Portugal o filme mais celebrado daquele cineasta, O Gabinete do Dr. Caligari: “Há nomes que, figurando num cartaz, acarretam várias responsabilidades. O nome de Robert Wiene, o encenador revolucionário do Caligari - filme que celebrizou, além do seu realizador, Werner Kraus e Conrad Veight, e que um ridículo preconceito impediu Lisboa de apreciar -prometia uma obra inovadora, curiosa, feita em moldes novos de conceção e técnica. Não ocultaremos a nossa desilusão”, pode ler-se a 13 de dezembro de 1927.Quase um século depois, O Cavaleiro da Rosa volta à mesma sala de Lisboa, no momento feliz em que esta está em festa, já que se prepara para festejar o centenário no final deste mês. No âmbito do Festival Leffest, no próximo domingo, às 17 horas, o filme de Robert Wiene será exibido, mas acompanhado pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida por Pedro Amaral, que interpretará a partitura original de Richard Strauss.Para o maestro, esta é uma obra muito aliciante, na medida em que combina modernismo e neoclassicismo: “A ação situa-se na Viena da imperatriz Maria Teresa, por volta de 1750, o que permitiu a Strauss fazer uma dupla homenagem: à cidade de Viena e à década em que Mozart nasceu. O tributo a Viena é evidente no uso da valsa, que emerge em muitas passagens da obra. Mas há também a reverência à segunda metade do século XVIII, que surge no incorporar de muitos clichés típicos do teatro e da ópera da época (sobretudo a ópera mozartiana, a partir dos anos 1780): os casamentos por conveniência, os amores proibidos, as intrigas, os equívocos, os triângulos amorosos, o questionar das convenções sociais.”.Mas, como também nota Pedro Amaral, Strauss anunciava já o modernismo musical: “Encontramos neste Cavaleiro da Rosa a irreverente imprevisibilidade do seu gesto musical, o cromatismo da sua linguagem harmónica, a irregularidade da sua métrica. Isto era o que de mais moderno se fazia na música europeia nos anos de 1909-1910. A abertura da ópera é uma coreografia sonora quase escandalosa de uma noite de amor, agitada e passional.”O sucesso desta ópera cómica foi tal que rapidamente chegou ao Cinema e foi o próprio Strauss quem rearranjou a música para criar a banda sonora do filme, cuja estreia orquestral ao vivo foi dirigida pelo próprio compositor. “Há um aspeto muito revelador na música que Strauss preparou para o filme”, diz-nos o maestro. “Quase toda ela é baseada na ópera, mas omitindo as vozes originais. Em muitos pontos, Strauss não alterou nem acrescentou uma nota à parte orquestral: limitou-se a retirar as linhas vocais. O facto de o tecido orquestral funcionar perfeitamente sem as vozes, mostra a sua riqueza e a sua autossuficiência no seio da própria obra original.”De resto, como também frisa Pedro Amaral, há, sem dúvida, algo de histórico e único para a História do Cinema, no facto deste filme, em 1926, ter estreado numa casa de ópera “com uma orquestra inteira a acompanhá-lo, sob a direção de um mestre insigne como Strauss.” O que se vai ver e ouvir neste domingo, no quase centenário Tivoli, é, pois, uma vitória do trabalho de pesquisa e reconstrução: “Mesmo tendo falido a Pan Film, que produziu a obra, suplantada pela chegada do sonoro, mesmo perdidas as bobines originais, conseguimos, praticamente um século após a estreia, voltar a projetar o filme, com orquestra em palco, exatamente como Robert Wiene e Richard Strauss conceberam o espetáculo.”Pedro Amaral não duvida que este filme-concerto tem todos os ingredientes (e algum picante) para agradar ao público: “É uma obra otimista e, a seu modo, “moral”, ao gosto do século XVIII, mas com uma linguagem moderna e, ao mesmo tempo, extremamente sedutora, cultivando uma frivolidade irresistível, muito distante da densidade wagneriana que se respirava nos teatros germânicos da época.”A ópera O Cavaleiro da Rosa estreou no Teatro Real de Dresden, sob a direção do próprio Richard Strauss, a 26 de janeiro de 1911. Poucas semanas depois, apresentar-se-ia no Teatro alla Scala de Milão e na Ópera de Viena. Em Portugal, chegou ao Teatro Nacional de São Carlos, a 29 de Março de 1924, sob a direção do maestro Tulio Serafin, mas não parece ter suscitado grande entusiasmo. Mais bem recebida foi a reação à encenação de fevereiro de 1954, dirigida por Jorge Solti.