O bebé de Hirokazu Kore-eda baralha as emoções de Cannes
Falta pouco para conhecermos os premiados da 75.ª edição do Festival de Cannes - será hoje, ao fim da tarde, que o júri presidido pelo ator francês Vincent Lindon dará a conhecer as suas decisões. Como é óbvio, nada se sabe, mas é um facto que há toda uma tendência da crítica francesa que acredita que o seu entusiasmo por Pacifiction, realização do catalão Albert Serra resultante de uma coprodução europeia (França/Espanha/Alemanha/Portugal), será o vencedor "compulsivo" da Palma de Ouro.
Pode acontecer, sem dúvida. Do meu ponto de vista, direi apenas que as esquemáticas aventuras metafísicas de um representante do Estado francês (Benoît Magimel) numa ilha da Polinésia me parecem um inventário formalista e redundante de algo que talvez pudesse ser uma curiosa parábola política sobre os nossos tempos. Infelizmente, das especulações sobre ensaios nucleares na referida ilha até um rol de pomposas considerações sobre o "fim da civilização", o filme vai-se esgotando numa fotogenia tão sugestiva quanto superficial.
Bem diferentes têm sido as reações a Broker, o novo título do japonês Hirokazu Kore-eda, desta vez a filmar na Coreia do Sul, contando no elenco com Soon Kang-ho (ator do consagrado Parasitas). De facto, as reações ao filme têm envolvido inusitados juízos morais, incluindo a não muito elegante ironia escrita no jornal Libération, a propósito do facto de o realizador voltar a filmar fora do Japão: "Por piedade, que alguém retire a Hirokazu Kore-eda o seu passaporte" (para os cineastas portugueses que gostam de dizer que a nossa "crítica" maltrata as pessoas que fazem filmes, eis um pedagógico pretexto de reflexão).
Dito isto, permito-me registar o meu entusiasmo por Broker (título francês: Les Bonnes Étoiles). Não seria fácil, de facto, construir um filme a partir de uma premissa tão crua. A saber: numa noite de chuva, uma jovem abandona o seu bebé, na esperança de que uma instituição religiosa o recolha e lhe dê um destino; o certo é que o bebé acaba por ser desviado por dois homens que vão tentar vendê-lo num esquema de adoções ilegais, desencadeando um drama que irá envolver duas mulheres da polícia e a própria mãe...
Não é uma tese, muito menos uma ficção "demonstrativa" sobre a responsabilidade de colocar uma criança no mundo ou o enquadramento legal a que uma adoção deve obedecer. Claro que Broker está recheado de elementos que ecoam tais temas. Seja como for, o que Kore-eda coloca em cena é, uma vez mais - lembremos Ninguém Sabe (2008) ou Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões (Palma de Ouro de 2018) -, o modo como a criança ocupa um lugar ambíguo e perturbante, no limite inclassificável, na dinâmica de valores em que os adultos se reconhecem ou querem reconhecer. Broker é, assim, um filme que baralha as emoções do espectador, porventura levando-o a questionar as suas próprias certezas e a ilusória transparência do mundo - direi, para simplificar, que isso é cinema.
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