O anime ainda é o que era

Enquanto aguardamos o próximo filme do mestre Hayao Miyazaki (How Do You Live?), que se encontra em produção, podemos reconfortar-nos com uma certeza: há uma nova geração de realizadores de anime que parece responder a uma certa herança criativa. Aquela que define a animação japonesa como um universo profundamente enraizado no folclore e na mitologia do seu país, colocando a representação da vida contemporânea em diálogo com as tradições mais antigas. É o caso de Mamoru Hosoda (Mirai), de Makoto Shinkai (O Tempo Contigo) e agora de Takana Shirai, uma animadora que se estreia na realização, depois de ter integrado o departamento de animação de filmes como Crianças Lobo, de Hosoda, e a obra-prima O Conto da Princesa Kaguya, de Isao Takahata. Filha de Kamiari, disponível na Netflix, revela então uma realizadora comprometida com a riqueza cultural do Japão, que nos propõe uma espécie de roteiro de santuários... Enfim, será mais complexo do que isso.

No centro da história está Kanna, uma menina de 12 anos imersa na melancolia das memórias da sua falecida mãe, com quem gostava de fazer corridas, desconhecendo que esta fosse uma descendente dos "deuses da corrida" (Idaten). Ela descobre esse segredo depois de uma maratona escolar que lhe recorda particularmente a mãe e, num mágico impulso de fuga, acaba por passar para outra dimensão de espaço-tempo e iniciar uma missão de entrega de oferendas no concílio de deuses (Kamihakari) no Santuário de Izumo - um dos mais antigos e importantes do Japão. Essa que era a incumbência da sua progenitora, que morreu antes de a completar, torna-se assim a grande maratona da vida de Kanna, com um grande teste à verdade dos seus sentimentos e à sua força de vontade.

Costuma dizer-se que o caminho importa mais do que a chegada, e é definitivamente esse sentido de aventura espiritual, na linha de A Viagem de Chihiro - com um dragão, um "deus impostor" e outras criaturas pelo meio -, que dá forma a esta animação. No fundo, estamos perante um conto sobre a perda e o perigo da letargia, sem que o seu peso dramático invalide a existência de personagens mais leves, como um coelhinho branco, que se diz mensageiro dos deuses, e um rapaz-demónio, ambos companheiros da jornada de Kanna pelos santuários.

Mencionar A Viagem de Chihiro não significa ver em Filha de Kamiari uma obra maior da animação japonesa, como é esse título de Miyazaki, mas o simples facto de ser capaz de evocar algo do fascínio pelo mundo dos deuses, é quanto basta para nos envolver na fantasia. De resto, uma fantasia que torna inteligível o imaginário cultural em causa, em vez de simplesmente mergulhar nele. Não é por acaso que uma das primeiras cenas do filme se passa dentro de uma sala de aula onde um professor fala das lendas de Izumo Taisha - o santuário para o qual seguirá depois a protagonista. Aqui e ali, Takana Shirai põe as suas personagens a iluminar conceitos de um saber ancestral que se funde com o mundo contemporâneo, e no processo de mistura da narrativa humana com a dos deuses, nasce uma bela e despretensiosa aventura.

dnot@dn.pt

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