Quando pergunto à minha irmã se se lembra do caso dos “irmãos Cavaco”, do outro lado da linha há um silêncio amedrontado e gaguejos de quem regressa aos ares perigosos de um tempo de “desgraça”. Com alguma névoa nas palavras, diz-me que vai fazer uns telefonemas para confirmar uns factos. Mas não vale a pena: o que me interessava captar era mesmo a reação dela a uma referência forte dos anos 80, altura em que era adolescente num Algarve marcado por dezenas de assaltos à mão armada. É, aliás, esse clima sórdido que a nova série O Americano, em estreia na RTP1 (hoje, 21h), reproduz ao longo de oito episódios, com uma espécie de linguagem de western surrado, que mais perto está da imundície da alma do que daqueles retratos de honra complexa que sempre tentam elevar o anti-herói na consideração do espectador.Aqui, personagens e ambiente são um corpo só, com a sujidade a vir do espírito e a estender-se até à ponta do cano da caçadeira de Faustino Cavaco (um impecavelmente sorumbático João Estima). Será a sua história que aqui se conta, mas não no sentido de centro único de gravidade: Ivo M. Ferreira, com a ajuda dos argumentistas Bruno Vieira Amaral e Hélder Beja, abriu o espectro à generalizada falta de delicadeza de um universo humano e de um tempo em que a conjugação de carros, armas, óculos escuros, bigodes, cigarros e uísque ofereciam a melhor leitura do mundo, em resposta ao vazio.Saltando entre 1980 e 1985, com outras datas pelo meio, a série (cujo título corresponde à alcunha dada a Faustino Cavaco) reconstrói a aventura imoral que foram esses anos, com a quadrilha liderada por um tal de “Doutor” (Ivo Canelas) a disseminar o medo de pistolas na mão e trusses enfiados na cabeça, enquanto um inspetor (Adriano Luz) fareja esta desgovernação masculina. Uma vez apanhado, o carpinteiro Faustino recebeu a sentença de 18 anos de prisão – mal sabiam eles que se tornaria no protagonista da mais violenta fuga da história prisional portuguesa. Que outro timing para ver O Americano senão depois do caso da fuga de Vale de Judeus?.A série é trágica e quase festivamente triste, mas nessa tragédia e tristeza há um jogo de cores, um contraste vivo entre a escuridão mundana e a adrenalina romântica que nos atiram para a verve da encruzilhada temporal. Este era o país onde tudo se passava no centro, ficando longe da serra algarvia as sensibilidades revolucionárias de então. As leis do faroeste assentavam melhor nas mentes dos que só conheciam a aspereza da existência e a predisposição natural para desafiar a morte. Digamos que Ivo M. Ferreira tirou essa fotografia à paisagem do sul.