O ABC do amor
Diz-se que quem conta um conto acrescenta um ponto. No caso dos protagonistas de As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos, quem conta os seus amores acidentais depara-se com o romantismo do próprio ato da narração. Nada de estranho ao cinema de Emmanuel Mouret (A Arte de Amar, A Fabulosa Caprice), que se tem fixado no tema clássico dos encontros e desencontros amorosos, embora nem sempre com resultados dignos de nota. Seja como for, esta última entrada na sua filmografia é um título que merece muita estima, já que revela uma certa maturidade adquirida pelo realizador e argumentista francês ao longo do caminho. Um filme animado pelo movimento das palavras - e o tremor íntimo que elas produzem - na boa tradição de Eric Rohmer e Woody Allen.
As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos começa com a chegada do jovem Maxime (Niels Schneider) à casa de campo do seu primo François (Vincent Macaigne), onde é suposto ir passar umas férias. Quem o recebe, porém, é Daphné (Camélia Jordana), a companheira do primo, grávida de três meses, que o informa da ausência de François, devido a uma emergência no trabalho. Apenas com a companhia um do outro e envolvidos pela paisagem do interior de França, os dois desconhecidos passam as horas seguintes, e mais uns dias, entre passeios turísticos e a partilha das suas peripécias íntimas ou desgostos amorosos. É uma forma de pôr à prova a habilidade narrativa de Maxime, um aspirante a escritor que diz querer "contar histórias sobre sentimentos". Para Daphné, a ocasião é perfeita.
Mouret usa então uma estrutura de segmentos narrativos, ou memórias em forma de contos, dentro do quadro presente daquela visita. E essas memórias levam-nos a mergulhar, por um lado, nas desventuras de Maxime, com o relato da sua confusão sentimental motivada por uma jovem de afetos divididos entre ele e o seu melhor amigo, e por outro, na história de como Daphné conheceu François, que à partida não era de todo o seu tipo de homem... Daí por diante, o filme de Mouret exerce uma espécie de feitiço romântico, sereno e simples, entrelaçando aspetos precisos de cada uma destas histórias com outras que se vão juntar. No final, temos uma complexa coreografia humana, envolvendo uma dúzia de personagens que, no fundo, só estão a aprender o ABC do amor.
Como o título do filme sugere, na sua tradução literal, tudo o que aqui se observa passa pela linha delicada que separa as palavras e os atos, aquilo que as personagens dizem (ou escolhem não dizer) e o que são capazes de fazer (ou escolhem não fazer). Desta vez, Emmanuel Mouret trocou o elemento da comédia por uma subtileza "literária" que conserva, aqui e ali, a graça das situações, sem perder de vista o essencial: as encruzilhadas da intimidade. Com selo da seleção oficial do Festival de Cannes - a edição de 2020, que não aconteceu -, As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos é um conto moral feito de vários contos morais, com as leis do coração à mercê de uma escrita inteligente e imprevisível dentro da sua linguagem clássica com sabedoria moderna.
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