"Nunca fui nem nunca serei uma revolucionária. Canto o fado que sinto"

Assinala-se hoje o centenário do nascimento de Amália Rodrigues e o DN republica uma entrevista feita pela jornalista Maria Augusta Silva por ocasião dos 65 anos da fadista.
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Amália: um nome, um fado em muitos fados, uma voz. A voz sem igual com que canta desde os 20 anos. Hoje (1985) tem 65 e diz ser uma pessoa desencantada, não com o público porque esse, em todos os cantos do mundo, ao longo de mais de quatro décadas, deu-lhe sempre testemunho da sua estima e admiração. Por essa Amália que nasceu em tempo de cerejas, no Pátio dos Quintalinhos, para os lados da Rua da Palma; por essa mulher que foi criança pobre, pés sem sapatos, e calcorreou as ruas da cidade apregoando limões.

Amália sonhava os sonhos dos simples. Assim sonhando, um dia cantou. E cantou de tal jeito que deixou a venda dos limões para tornar-se na grande senhora de um fado com marca. De um fado sofrido. De um fado que tem amor e ciúme, lágrimas e esperança, carências e súplicas. De um fado que é nosso na expressão mais singela das palavras comuns a todos os mortais. Na voz de Amália esmoreceram aos poucos a gargalhada inocente e o pregão cristalino a fugir da polícia. Mas trouxe para o fado a força da alma.

E Amália continuou amarrada ao sonho com tais amarras e tão cegamente que se foi esquecendo de criar defesas contra todos os riscos para acautelar a sua humildade e a sua grandeza.

Magoaram depois os seus sentimentos quando ela, fadista de encontros e desencontros, quis manter o seu fado sem desvios. Amália chorou então mais amargamente que nunca e ficou-lhe uma ferida que sangra por dentro ao mais leve toque. Encontrou refúgio no seu temperamento dramático e tímido, pedindo ao fado perdão por o haver cantado e sentido como destino único. E continuou a correr para o campo num apelo à vida, colhendo flores à beira da estrada, carregando braçados de folhas e giestas e alecrim aos molhos. E continuou à procura de um mar imenso e forte para sobre ele estender a utopia, os sonhos à margem da teia material da vida.

Amália Rodrigues volta agora a ser recordada (justiçada) na gravação dos seus maiores êxitos e revela-nos uma sensibilidade de corpo inteiro, prometendo para breve a sua voz em poemas de Cecília Meireles. E prometendo, também e apesar de tudo, amar o fado até ao fim. O fado que, ontem como hoje, deseja cantar para toda a gente.

O melhor de Amália Rodrigues volta a ser apregoado em reedição discográfica. O que é para si o melhor de Amália?
Creio que a intenção é lembrar os meus primeiros sucessos e os fados que as pessoas mais têm gostado de me ouvir cantar. No início da minha carreira, eu tinha uma voz cristalina, cheia de frescura e plena de inocência. Tinha, afinal, a inocência de uma pessoa que não sabe o que é cantar nem coisa nenhuma...

Como diz que não sabia cantar se a descobriram precisamente por ter uma voz excecional para o fado?
Tinha voz, naturalmente, mas faltava-me um certo "calo", uma habituação às músicas e até a forma de dar a volta às interpretações, o que já requer uma educação da voz, embora nenhuma técnica nos valha se não houver a tal intuição.

A voz dos seus 20 anos nada tem que ver com a voz dos seus 40 nem com a voz, hoje, dos 65 anos, que a leva ainda a novas gravações?

Aos 20 anos, a minha voz era fresca e tinha, porventura, a beleza dessa juventude. Mas acho que aos 40 anos foi quando atingi uma capacidade de interpretar o fado com maior profundidade ou, se preferir, com maior maturidade. Não porque soubesse cantar melhor. É outra coisa, até porque eu nunca saberei cantar na minha vida!

O quê, Amália? Espanta-me uma afirmação dessas. Tem andado 45 anos a cantar sem consciência de cantar bem?
Não é isso. Sinto que nunca canto hoje igual a ontem. Quem me ouve cantar duas ou três vezes sabe que isto é verdade. Tenho a intuição do fado. Foi qualquer coisa que Deus me deu, mas depois o fado sai de mim consoante o meu estado de alma, os meus nervos, as minhas emoções. Tudo se prende com a nossa interioridade. O fado ou é isso ou nada...

Recusa-se a aceitar outros valores no fado?
De maneira nenhuma. Eu reconheço e aceito outros valores desde que sejam valores. Há alguns, mas também há por aí quem de fado nada entenda e pretenda misturar o trigo com o joio... Isso dói-me!

Faz sempre questão de afirmar que a sua voz é um dom divino. Tem assim tanta convicção em Deus?
Tenho. Eu não fiz nada para ter esta voz. Então, porque a tenho? Alguém ma deu...

Nessa sua convicção, como define Deus?
Não tem definição. Deus, para mim, é Deus. Sinto essa força dentro de mim. Acredito em Deus mesmo que não exista o céu. Não vale a pena tentar explicar. Não encontro explicação em palavras ou teorias, tal como, por mais que uma pessoa me tente explicar o que é uma árvore, também não encontro uma explicação inteira.

Uma árvore tem raiz, tronco, ramos, folhas... A botânica é uma ciência. A gente pode ver a árvore, apalpá-la...
Aprendi isso, apesar de só ter três anos e três meses de escola. Mas dentro de mim uma árvore é qualquer coisa mais forte, mais grandiosa, que a botânica não consegue definir. Da mesma forma acredito em Deus plenamente, ainda que tudo se acabe cá na terra. Acredito em Deus mesmo que a minha alma não vá para o Céu nem para o Inferno nem para o Paraíso. Sou uma pessoa inculta, não tenho vergonha de o dizer, mas esta é a minha forma de estar na vida. É a minha filosofia.

Gosta de se comparar às árvores. Num fado seu diz que o pinheiro é seu irmão até no jeito de erguer os braços em vão... Tem de si um sentido de grandeza?
Não é uma grandeza tola, é antes uma força, um sentimento de libertação. O pinheiro é uma árvore alta, livre no espaço se a não mutilarem. Também gostava de ser mais alta...

Tem complexos quanto à sua altura e beleza? É um estado de morbidez, puro masoquismo para ser mais dramática?
Não dramatizo as coisas por via disso. São gostos femininos que julgo normais. Mas pronto, não sou mais alta nem bonita, tenho de me aceitar como sou.

Quando fala de beleza tem como padrão a beleza helénica?
As palavras que você me diz... Helénica é dos gregos, não é? Bom, eu aceito que não haja padrões rígidos de beleza. E, pensando melhor, quando vejo fotografias minhas dos tempos em que era jovem, posso concluir que estive quase para ser bonita e estive quase para ser muito feia. Fiquei no meio-termo...

Camões foi o maior fadista

Nessa sua tendência para o fatalismo costuma, igualmente, insistir no facto de ser uma mulher inculta. Tem da cultura a ideia de que esta só existe nas universidades, nos doutoramentos?
Julgo que só é culto quem aprendeu muito, quem teve a possibilidade de andar muitos anos na escola.

Amália, há muita gente que empinou livros na escola e não tem o mínimo de sensibilidade para aprender a descobrir coisas belas. Não será verdade?
Tem razão mas eu também tenho a minha. Reconheço que há gente que leu muito e não tem o entendimento das coisas com urna certa dose de sensibilidade. Só que é gente que sabe falar com eloquência e eu não sei. Gostava de ser culta para exprimir a minha sensibilidade, para dizer uma palavra sem ter que dar a volta ao Rossio até a encontrar.

Avalia as pessoas pelas palavras eloquentes... É isso, Amália?
Eu até costumo dizer que, se não fosse fadista, gostaria de ser psicóloga porque sinto necessidade de analisar as pessoas.

Não fuja à minha pergunta. Só as pessoas eloquentes são gente?
Não fujo à sua pergunta, não. E então digo-lhe que, entre uma pessoa bem-falante, mas oca de sensibilidade, e uma outra sem discurso, mas sensível, prefiro a última. Talvez por isso, quando penso que sou estúpida porque não estudei, chego, às vezes, a não importar-me de ser estúpida, já que me conheço e sei que sou uma pessoa sensível; sei que leio um livro e o sinto, mesmo que não saiba sequer dizer aos amigos quem é o autor...

Ora aí tem: não é só culto quem estuda tratados filosóficos...
Pois... O ideal é ser-se culto e sensível. Mas nem todos podemos ser eruditos, embora fosse bom que, pelo menos, todos fôssemos sensíveis.

Quando canta Camões, por exemplo, sabe quem foi o poeta?
Não lhe falo do Camões épico, que tem muito valor, com certeza, mas de mitologia não entendo patavina. Mas sinto que Camões foi, na sua poesia, o nosso maior fadista. Li os seus sonetos, os seus versos de amor, e encontrei neles o fado, o destino, o sentir de uma alma. Compreendi-os sem precisar de ir ao dicionário. Sou toda coração e não me pergunte porque sou assim e não de outra maneira, porque isso seria o mesmo que perguntar a um cardo porque é um cardo e não é uma casa...

Um chilique em Hollywood

De qualquer modo, não sente que foi uma mulher que se fez por si e conquistou sucesso à sua custa?
Não fiz nada para ser o que sou. José Galhardo e Frederico Valério compuseram-me um fado e nele se diz e canto: "Amália, quis Deus que fosse o meu nome...". Por isso me deu esta voz. E o público, especialmente o povo de onde venho, acarinhou essa Amália. Sou o que sou por essa razão.

Não teve que trabalhar o seu talento para estar ao nível, logo no começo da sua carreira artística, de Jacqueline François, Edith Piaf, Charles Trenet, Maurice Chevalier, Nat King Cole?
Não fiz mais que cantar com a minha voz e humildade. Entrava em pânico (ainda hoje isso acontece) quando me via ao lado de nomes tão famosos. Aliás, fico sempre a tremer como varas verdes quando entro num palco..

Se fica, disfarça bem...
Só eu sei os nervos que se apoderam de mim! Numa ocasião tive um chilique!

Que lhe aconteceu, esqueceu-se da letra do fado?
Não... Ia cantar em Hollywood, e eu, que estava habituada a aparecer só com os violas e os guitarristas, tinha de enfrentar ali uma orquestra com mais de uma centena de músicos. Quando me apercebi bem do que me esperava, caí para o lado! Reanimaram-me mas supliquei a Deus que me desse naquele instante uma febre de 40 graus...

E Deus, sabedor da sua fé, atendeu a sua súplica?
Não! Pregou-me uma partida ..., tive mesmo de cantar. Mas ajudou-me e não me saí mal. As palmas do público tranquilizaram-me.

Sucessos iguais conquistou-os em todos os cantos do mundo. Ninguém se esquece de Amália no Olympia, na Broadway, no Lincoln Center, enfim, é quase impossível referenciar todo esse apogeu. Apesar disso, acha que não é uma vedeta?
Vedeta não sou. O que é isso de ser vedeta? Mas não posso negar-me nem negar a minha vida. O que eu digo é que esse talento e essa intuição são um dom e não fruto de um grande esforço, de uma grande luta.

Estará a cultivar uma vaidade através de falsa modéstia?
Falsa modéstia, não! Acreditem ou não as pessoas, sei que sou assim humilde e fico de bem com a minha consciência. A minha vida foi e continuará a ser o fado até que o público não me queira. Não tenho outras ambições. Não sou política, não gosto de vidas mundanas, nunca alterei a minha maneira de ser. Deixem-me ser quem sou.

Magoaram-me profundamente

Diz isso com tanta mágoa! Os olhos cheios de lágrimas... É por a terem quase ignorado nesta última década? Alguns colegas procuraram afrontá-la depois do 25 de Abril. Essa a sua maior dor?
Colegas, compositores, intelectuais... Magoaram-me profundamente. Tanta calúnia, tanta mentira. Ao princípio, eu estava de olhos fechados, não conseguia entender o porquê...

Que se passou: não lhe perdoavam a sua voz independente? Fazia-lhes sombra? Ou a própria Amália sentiu que não estava tão à vontade e ficou chocada?
Só não me perdoa quem não me conhece bem. Mas deixe-me chorar senão rebento! Julgo que desejaram queimar-me dizendo que eu era um produto do fascismo, que era uma espia, uma contrabandista, uma bêbeda... Tantas mentiras horrorosas! Como hei de curar essa ferida? Quero esquecer, mas dói-me muito este desencanto...

Teria sido porque a Amália Rodrigues não emprestou a sua imagem a nenhuma força política?
Sei lá! Até chegaram a dizer que havia um subterrâneo no meu quintal por onde eu ia ter com Salazar para ele se aconselhar comigo! Disseram também que tentei envenenar Humberto Delgado, no Brasil. Isto é duma imaginação incrível! Nunca admiti que pudesse haver tanta maldade.

Se tivesse apanhado alguma carruagem dos comboios político-partidários, ter-se-ia livrado desses embaraços?
Não foram embaraços, foram calúnias! Foram mentiras tremendas que me destruíram a alegria e a saúde. Terei de pedir desculpa por já cantar o fado há 45 anos? Não devia cantar o nosso fado só porque o regime era salazarista ou marcelista?

Não sou uma revolucionária

Por vezes, os governantes servem-se de coisas que funcionam como um ópio para o povo... Não concorda?
Mas eu não sou servil tal como não sou uma revolucionária. Por mim, sempre cantei o fado sem pensar em políticas. Nunca apanhei nenhum comboio ou avião..., a não ser aqueles em que me deslocava e desloco para ir cantar a qualquer terra. Cantar do jeito que eu sei e sinto. Cantar o nosso fado e o nosso folclore de que tanto gosto. Nunca tive apoios de nenhum governo nem antes nem depois do 25 de Abril.

Estas coisas são muito complicadas, Amália... O fado dramático, de amores e pecados, não era (nem é) propriamente a chamada canção de intervenção revolucionária...
Mas eu repito, nunca fui nem nunca serei uma revolucionária. Nunca quis fazer acreditar o contrário. Nunca me mascarei (a não ser no Carnaval). Canto o fado que sinto, que gosto de cantar. Canto as letras com as quais a minha sensibilidade se identifica. Onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá, é para cantar os meus fados e não para ir debater questões políticas com os governos... Quero ser o que sempre fui: a Amália que canta para toda a gente.

Não se conforma com a possibilidade de haver quem não goste de si?

Que disparate! Ninguém pode ter a veleidade de pensar que agrada a todos. Mas não foi o público que me esqueceu. Eu sinto que não foi o público. Até é curioso como os jovens se aproximam de mim e se interessam pelo fado, são sensíveis ao fado, ao nosso fado. O público nunca me tratou mal, nem no meu país nem noutro qualquer.

Ainda antes do 25 de Abril cantou Povo que Lavas no Rio, de Pedro Homem de Mello. Esse fado parecia uma pedrada no charco...
Cantei esse e muitos outros poemas que, aos olhos das tais políticas, talvez pudessem ter interpretações várias. Mas porque se há de meter a política em tudo? Cantei José Régio, também. Mas cantei e canto por sensibilidade, por sentimento, não para politizar... Naturalmente que num ou noutro fado pode estar mais a vida de um povo. O público, uma pessoa pode sentir-se na pele desse fado conforme os seus sentimentos. O fado é uma coisa muito nossa exatamente porque traduz o nosso sentimentalismo. E é esse o fado que eu canto.

Também cantou o Extraterrestre... Foi a brincar?
Tenho coisas melhores e outras não. Não tenho é a mania de a Amália não poder cantar isto ou aquilo porque é a Amália. Pelo facto de ter cantado o Extraterrestre (ou coisas parecidas) não deixei de ser exigente na qualidade da interpretação nem me caíram os parentes na lama... Nem foi por isso que deixei de sentir o fado como sempre o tenho sentido, o fado que está interiorizado na minha alma.

O meu sonho: amor e paz

E será a Amália uma pessoa tão passiva que não se aperceba, tantos anos a correr o mundo, das diferentes sociedades e dos diferentes regimes político-sociais que as comandam? Nunca fez comparações? Nunca sentiu injustiças? Nunca se sentiu impressionada com algumas situações?
Choca-me a fome em tantos países, por exemplo. Não sou insensível aos problemas do mundo que me rodeia. Mas eu sou, por temperamento, uma pacifista. Gostava que nunca tivesse de haver guerra para se resolverem os problemas. O meu sonho: amor e paz. Nem posso ver sangue... Fico petrificada! Gostava que as pessoas se entendessem sem terem de se matar ou injuriar. É por isso que não entendo a política nem tenho preparação para a analisar.

Há precisamente 40 anos, estava a Amália a conquistar-nos com os seus fados, foi lançada a primeira bomba atómica que ficou conhecida por bomba de Hiroxima. Já era adulta, o que sentiu?
Tenho memória dessa tragédia porque ouvia os comentários. Ouvia a minha mãe contar coisas, ouvia falar na rua. Não ouvia na rádio. Nesse tempo, só tinha rádio quem era rei! E o que eu ouvia as pessoas dizerem apertava-me o coração. Mas penso que para as bombas acabarem (ou para que nem sequer existam) tem que, primeiro, deixar de haver gente videirinha, oportunista, que passa por cima de tudo. O mal de raiz, na minha opinião, é esse. E depois sofrem os inocentes, os que não sabem defender-se, que são a maioria.

Como é que a Amália foi à União Soviética numa ocasião em que Portugal não tinha relações diplomáticas com a Rússia?
Nunca mendiguei vistos para o meu passaporte. Nunca mendiguei contratos. Tive sempre curiosidade em conhecer a Rússia. Queria ver se também ali entendiam os meus fados, sem política. Um dia, a minha empresária em Paris (que está viva, felizmente, e poderá dizer se isto é verdade ou não) contratou-me para ir à União Soviética. Foi ela quem me tratou do passaporte. Fui e cantei lá como em qualquer outro sítio. Estive no Circo Popov, estive com o Coro do Exército Vermelho e não fiz mal a ninguém tal como ninguém me fez mal. O público soviético ouviu-me cantar e aplaudiu-me como me aconteceu em tantos outros países.

Só espio o meu fado

Era muito difícil romper, então, a Cortina de Ferro... Não teria a Amália servido de isca ou de fachada?
Servir de isca? Olhe, ninguém me mordeu! De fachada? Olhe, levei a minha cara de sempre e o meu fado de sempre. A minha consciência estava tranquila e continua tranquila. Pretenderam insinuar que eu era espia. Que tristeza! Eu só espio o meu fado. E já não é pouco!·

A força do sentimento

A maior parte do público para o qual tem cantado, em todos os continentes, não entende o nosso idioma e a Amália canta quase sempre em português. Que "milagre" é esse?
Há uma coisa que é universal e toda a gente entende: é a força do sentimento que uma voz expressa; é a carga dramática do fado; é a melodia; é o timbre da voz. É uma linguagem sem fronteiras, e o nosso fado, o nosso autêntico fado, tem essa linguagem, tem essa força de amor e de comunicação. Cantar noutro idioma também canto, mas não é importante. Os meus fados e os meus sentimentos são bem portugueses.

Tão portugueses que nunca quis ficar a viver noutro país. No fundo, continua com amarras ao Pátio dos Quintalinhos (Lisboa) onde nasceu?
Tenho muita ternura pelo Pátio dos Quintalinhos, onde nasci e onde vivi com sete irmãos (mais dois morreram antes de eu nascer). Mas não é só a ternura pela minha raiz humilde. Gosto da minha terra, da minha casa, da minha família, dos meus amigos. Sou uma pessoa emotiva mas não uma mulher frívola. Não troco nada por um convívio caseiro, familiar. Como é que eu, num país estrangeiro, ia viver sem a minha broa e a minha sardinha assada, sem as minhas sopas de feijão?! Como é que eu ia passar sem ver o Alentejo, sem ver Trás-os-Montes?! Tinha lá paciência para andar todos os dias em jantares e almoços de sociedade!

No entanto, os seus contratos no estrangeiro ajudaram-na bastante materialmente. Ainda os aceita. Está rica ou não?
Não tenho a fortuna que muita gente julga. Mas não me queixo. Se ainda aceito contratos é porque o público me quer ouvir cantar.

Tenho outra fome

Parece uma mulher desencantada com tudo, apesar de ter conseguido vencer a pobreza da sua infância. Não lhe parece que está demasiado fechada em si mesma?
Estou desencantada, isso estou, porque, afinal, vejo que o meu mundo, o mundo que eu sonhava, não é possível. A realidade é completamente diferente daquilo que eu queria. Fiquei presa aos meus sonhos de criança...

A sua infância foi de pobreza como a de tanta gente, e de tanta gente que não teve a sua estrela... Devia ter razões para se sentir feliz. Porque se embrulha nessa angústia, nessa tortura? Porque chega a ter saudades, como diz num fado recente da sua autoria, dos tempos em que "passava fome passava, lavava no rio, lavava..."?
Não é dessa fome que tenho saudades como é óbvio. E também devo dizer, em abono da verdade, que éramos pobres (sapatos, onde estavam eles?) mas nunca passámos a fome que atinge, ainda hoje, milhares de crianças em todo o mundo. Não desejaria, naturalmente, voltar àqueles tempos em que eu e a minha irmã Celeste andávamos pelas ruas a vender limões para ganhar uns tostões. Mas do que tenho saudades é da minha alegria quando era pobre, da minha capacidade de sonhar. Sinto agora outra fome que nenhum pão e nenhumas azeitonas podem saciar... Sinto saudades de quando os polícias iam atrás de nós e a gente corria às gargalhadas, a fugir com os limões no cesto...

Nem o facto de os polícias a não quererem deixar vender os seus limões (ganhando uns tostões para comer) a fazia uma pessoa revoltada com as discrepâncias sociais?
Quer eu quer meus irmãos fomos educados dentro de princípios de resignação, desse tal fatalismo que é o próprio fado. Éramos alegres. A revolta não fazia parte da alegria de sermos crianças. Aceitávamos as coisas como tendo de ser assim. É dessa alegria que sinto saudades. Era uma alegria inocente...

Mas ninguém gosta de ter um polícia a dar-lhe cabo da cabeça... É por isso que a Amália não simpatiza muito com homens fardados, segundo o que se escreveu em algumas entrevistas suas?
Essa é boa! Nunca disse que tinha aversão a homens fardados. Se forem bonitos até gosto deles! O que eu sou é supersticiosa. Desde miúda, se estava com alguma superstição fechava a mão e só a abria quando via um homem com farda porque diziam que dava sorte. Os homens de farda até são precisos se souberem cumprir as suas obrigações cívicas. E dão jeito para as minhas superstições!

Gosto do tipo aciganado

É católica mas supersticiosa. Gosta de homens bonitos mas sente-se uma mulher desencantada e sem esperança. Tem fome de ser alegre. Teve uma educação conservadora. Preferiu a aceitação à revolta. Adiante: se Mário Soares lhe batesse à porta, neste momento, como o atenderia?
Atendia-o bem, educadamente.

E não lhe perguntava nada?
Como está, tem passado bem? Espero que sim...

Que idade dá a Freitas do Amaral?
Não sou muito forte a acertar em idades... Ele é um bocado pesado, mas deve ter quarenta e tal anos...

Tem vontade de cortar as sobrancelhas a Álvaro Cunhal?
Não... Tinha medo. É melhor que fique com as sobrancelhas todas. São dele, o seu a seu dono!

Gostaria que Lucas Pires tivesse os olhos de outra cor?
Qual é a cor dos olhos do Lucas Pires? Nunca reparei...

Tem olhos esverdeados...
Então é melhor ficar com os olhos que tem.

Quer dizer que a Amália gosta de homens com olhos claros?
Não. Por acaso até gosto de morenos, tipo aciganado porque também sou meia-aciganada!

Alguns dos nossos políticos têm esse tipo aciganado que tanto lhe agrada?
Eu acho que todos eles são um pouco aciganados..., mas num outro sentido...

E, quanto a Cavaco Silva, acha que tem pouco peso para a sua altura?
Eu só o vi uma ou duas vezes e nem reparei se era gordo ou magro.

Daria um conselho a Maria de Lourdes Pintasilgo para mudar um pouco o penteado?
Aconselhava-a mais depressa a ser rouxinol...

Vive aqui em São Bento, tão pertinho do Parlamento, nunca sentiu ganas de dar um salto até lá e pôr-se a cantar o fado, por exemplo, a cantar Povo Que Lavas no Rio ou aquele mais antigo, Conta Errada?
Não, não seria capaz duma coisa dessas. Sou muito passiva. Direi mesmo que até sou cobarde!

Cobarde porquê? Porque gosta, prefere ser cobarde?
Para quem tem o meu feitio, é mais natural ser cobarde do que ser valente. Não sou uma agitadora. E tenho muito medo de ferir as pessoas, até mesmo aquelas que mereciam que eu lhes dissesse alguma coisa amarga e dura. Prefiro ficar em casa, chorar sozinha ou desabafar com os amigos. Prefiro chorar a cantar...

Admiro o Infante D. Henrique

Muitas condecorações tem recebido e não só em Portugal. No seu país, pelo menos duas altas condecorações, uma das mãos de Marcelo Caetano, outra das mãos de Ramalho Eanes. De que mãos mais gostou de receber essas distinções que representam o reconhecimento público do seu mérito?
É suposto ter-se uma reação de orgulho ou de honra ou de contentamento. Mas, não sei porquê, fiquei parada, sem alegria por dentro. Não consigo voltar a ter o meu sorriso de criança, a minha cabeça louca... De qualquer modo, a condecoração que recebi, a da Ordem do Infante D. Henrique, e me foi atribuída pelo general Ramalho Eanes, gostei mais dela por ser a do Infante D. Henrique, figura histórica que sempre admirei.

Essa sua predileção pelo Infante D. Henrique revelará uma simpatia da sua parte pela monarquia?
Não tenho nada que ver com a monarquia. Na pouca escola que tive, aprendi (e ninguém tem culpa de aprender o que aprendeu) que Portugal era deste tamanho, que Angola era 14 vezes maior. E tudo estava ligado a feitos de homens como o Infante D. Henrique...

Está contra a independência das ex-colónias portuguesas?
Eu não. Mas também não posso estar contra a história dos povos.

Feminina mas não feminista

Sentiu-se sempre uma mulher independente?
Independente nunca fui. Sou independente dentro de mim, nos meus sentimentos, mas estive sempre dependente de uma educação, de um tempo em que não se podia fumar à frente dos pais nem sair à rua de braço dado com o namorado. Quando um dia saí de braço dado com o meu namorado, apanhei uma valente sova!

Nunca desejou integrar um movimento feminista?
De maneira nenhuma. Sou muito feminina mas não sou pessoa de ir para a rua agitar bandeirinhas por um movimento feminista.

A emancipação da mulher e o direito à igualdade não lhe interessam?
E isso consegue-se com bandeirinhas na rua? Penso que o importante é cada pessoa estruturar a sua personalidade e fazê-la respeitar.

O que pensa da homossexualidade? Acha que é uma aberração?
Natural não é... O natural é a procriação...

Não lhe coloco a questão da sexualidade só em termos de procriação. Diga-me o que pensa da homossexualidade.
Tenho muitos amigos que são homossexuais. Não deixo de lhes ter amizade por isso. O que me importa é a boa educação, o respeito que devemos uns aos outros.

Não tem filhos, Amália. Recusou-se a tê-los ou algum problema a impediu de ser mãe?
Não me recusei, ou melhor, não fui capaz de fazer uma cirurgia de que necessitava para poder engravidar.

Foi egoísmo ou teve medo?
Tive medo. Fujo do bisturi como o diabo da cruz... Morro só de pensar numa operação!

Gosta muito da si mesma? Medo de morrer? Tem-lhe custado envelhecer?
Não é o gostar de mim mesma. Gosto de viver com os meus amigos, com a minha família. Felizmente, ainda tenho a minha mãe, já com 93 anos.

E a velhice atormenta-a?
Ora, se fosse só eu a envelhecer, ficava danada! Mas toda a gente envelhece, é a ordem natural da vida. Tenho de aceitar que é assim. E aproveito para lhe dizer que nunca fiz nenhuma operação plástica, no entanto, encarregaram-se de me inventar meia dúzia delas... Até não me importaria de me rejuvenescer, mas operações já bastam as que tiveram que ser, como uma pequenina que fiz agora para extrair um quisto junto ao ouvido. ·

Que opinião tem sobre o aborto?
Não é fácil dar uma opinião de ânimo leve. Felizmente, nunca me senti numa situação dessas. É uma questão complicada. Só quem vive esse problema em toda a sua dimensão o poderá, de facto, avaliar.

Sou ciumenta mas não faço cenas

O seu primeiro grande sucesso foi com o fado do Ciúme. É uma mulher ciumenta?
Foi realmente o meu primeiro sucesso, graças ao Frederico Valério (marcou-me tanto a sua morte!). Sou uma mulher ciumenta, até porque sou muito insegura, mas sou incapaz de fazer uma cena de ciúmes. Vingo-me a chorar...

Ainda se lembra de quem foi o seu primeiro namorado?
Se me lembro! Casei com ele. Foi o meu primeiro casamento, era novinha. Chamava-se Francisco Cruz, era meu guitarrista.

Foi importante para si esse primeiro casamento?
Era muito nova e naquela altura o casamento era a consequência lógica do namoro. Ele até era bonitinho, tocava bem guitarra e, tal como eu, tinha a mania do fado. Depois, os nossos fados separaram-se...

Teve muitos homens apaixonados por si... Gostava de sentir-se amada? Maltratou alguns desses amores?
Tive muitos homens apaixonados, não sei se todos por mim se mais pela minha voz. Nunca confiei muito em que gostassem de mim se não cantasse. E reconheço que maltratei algumas paixões mas duma maneira inconsciente.

Hoje, com 65 anos, disposta a continuar a cantar o seu fado, sente que a sua vida de mulher foi sentimentalmente frustrada?
Digamos que, por força da minha vida, da minha carreira, dei menos de mim ao amor do que podia ter dado. Transportei o amor mais para o fado...

Esqueceu-se de si como mulher? Fez prevalecer a artista?
Talvez me tenha esquecido um pouco de mim. Mas voltei a casar-me e este casamento dura há 25 anos.

Raramente as pessoas a veem acompanhada do seu marido. Quem é?
Não sei se ele quer que lhe diga o seu nome, por isso não digo. Nunca misturamos a nossa vida familiar com a minha vida profissional.

E este casamento deu-lhe alguma estabilidade sentimental e psicológica?
É uma pessoa com quem posso contar. Uma pessoa que gosta de mim, é um homem bem-educado, nunca discutimos. É um casamento que julgo feliz.

Ele não tem ciúmes dos seus fados, da sua entrega apaixonada ao fado?
Penso que não. Ele tem outras motivações. Tem também uma educação portuguesa, sabe como eu sou. Quando se casou comigo sabia que eu já tinha sido casada, que era uma mulher inculta e era fadista e amava o fado. Ele é engenheiro mecânico, tem a sua própria sensibilidade, não canta, até porque desafina... Mas penso que gosta de mim, independentemente de eu cantar o fado.

Nunca lhe disse que gostava da sua voz?
Não sei se ele já se cansou de me ouvir cantar ou se ainda é um espectador que me acompanha. Antigamente dizia-me que tinha ouvido fulano ou sicrano a cantar coisas minhas mas que não sentia o arrepio que costumava sentir quando era eu a cantar.

E a Amália não sabe se ele ainda se arrepia quando a ouve cantar?
Não me tem dito nada... No fundo, ele deve sentir que o fado e as minhas cantorias lhe têm roubado a minha companhia, e tem alguma razão nesse aspeto. Embora eu seja uma mulher caseira, que nem sequer gosta de ir a restaurantes, estou em casa mas estou sempre rodeada pelo fado. ·

Flores, sempre flores

Que melhor prenda lhe podem oferecer?
Flores. Muitas flores. Basta olhar para a minha casa. Vou quase todos os dias ao campo colher flores.

É uma espécie de apelo à vida?
Disse bem, é um apelo à vida. Gosto do campo e do mar. Então do mar nunca me canso. Sinto uma força, uma ânsia de libertação!

Libertação... Mas a própria Amália diz que acaba por ser cobarde e fica fechada em si mesma...
Sou muito paradoxal. Reconheço que sou.

Os poemas que ultimamente tem feito são a única forma do seu grito fazer eco?
Não tenho pretensões a poeta. Deus me livre! Mas ao escrever algumas letras para os meus fados, agora que estou desiludida de todos os meus sonhos, talvez seja, sim, uma forma de gritar, de dizer o que me vai na alma. Tenho pena de mim. Sonhei um mundo tão diferente... Sou uma pessoa de mãos abertas. Entrego-me à amizade sem tomar precauções. Pensei sempre que não era preciso uma pessoa precaver-se quando a amizade existe e as pessoas falam abertamente. Mas há gente que engana tanto! ...

Teria fechado demasiado os olhos em sua defesa, para sua comodidade? Temia, se os abrisse, encontrar uma realidade que nada tem que ver com a Branca de Neve e os Sete Anões?
Pois é... Eu sonhei muito com a Branca de Neve e os Sete Anões... Este maldito romantismo, esta falta de confiança em mim mesma... Tinha de ser fadista, fatalmente...

E quis ser sempre, também, uma menina mimada?
Julguei que poderia ser assim comigo e com toda a gente. Talvez seja do meu signo, sou Leão.

Em que mês nasceu?
A minha avó dizia-me que nasci com as cerejas. Registaram-me oficialmente a 23 de julho. Mas, ao certo, ao certo, não sei o dia em que nasci. Cá por mim, optei pelo dia 1 de julho, que é logo o princípio do mês...

Mas as cerejas começam a amadurecer em fins de maio... Afinal, qual é o seu signo?
Escolhi o de Leão, mas, se calhar, até sou Touro, Gémeos ou Caranguejo...

Tem pelo menos a certeza do ano em que nasceu?
Tenho. Foi em 1920. Agora o mês... Foi com as cerejas e não me desagrada a época do ano, embora eu aprecie mais pêssegos, figos e melão. Mas é tudo fruta da época!

Quer ficar na lenda como a Severa?
Não quero lenda nenhuma. Só quero estar com as pessoas. Só preciso de amor e de amizade enquanto respiro e me sinto. Depois ..., bem, não me importo que vão pôr umas florinhas na minha campa, sempre ficará mais arranjadinha...

Não quer fazer um esforço para se libertar dessa angústia?
Mas como? Eu disse-lhe que perdi a capacidade de sonhar, mas é possível que o meu grande mal seja precisamente o não conseguir deixar de sonhar... É o meu destino.

O fado de Coimbra é muito sentido

Acha que o fado de Coimbra é tão fatalista como o fado que a Amália canta?
Não será fatalista, mas é um fado muito sentido de que gosto imenso. A minha voz segue um pouco a melodia arrastada do fado de Coimbra. Não se canta fado sem sofrimento e o fado de Coimbra tem intérpretes muito bons na voz e na música.

Quem são os seus intérpretes preferidos do fado coimbrão?
Não costumo indicar nomes mas o Menano tinha o fado de Coimbra nas veias. E Artur Paredes fazia gemer a guitarra.

Sabe que Almeida Santos é político mas também canta o fado de Coimbra?
Sei, já o ouvi cantar. E olhe que ele para o fado até tem jeito. Canta bem!

E quando volta a Amália Rodrigues a gravar um disco com fados novos?
Tenho diversos trabalhos nesse sentido. Qualquer dia vão sair, se não ficar para aqui enrodilhada em lágrimas de cansaço.

Não sente que, ao reeditarem agora os seus maiores êxitos, estão a fazer-lhe justiça ou a tentar reparar uma injustiça?
É possível que sim. Mas o sofrimento que me causaram... Sabe, é como quem corta as pernas a alguém, mesmo que seja sem querer, e, depois, quem irá restituir-lhe as pernas sadias? É esse frio que me gela...

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