Nolly: a nostalgia das soap operas
Talvez nunca nos tenhamos perguntado, mas, como em tudo na vida, houve uma primeira mulher a aparecer na televisão a cores. Essa mulher foi, na verdade, uma jovem Noele Gordon (1919-1985), que, na sua combinação de olhos azuis, pele clara e cabelo escuro, se afigurou o modelo ideal para as experiências do engenheiro escocês John Logie Baird. Entrando pelos bastidores dos primórdios da TV, é com um vislumbre dessa magia dos testes de cor que começa a minissérie Nolly, em estreia esta segunda-feira (22.10h), muito adequadamente, no TVCine Edition. Uma produção “sentimental” de um dos mais talentosos argumentistas britânicos do nosso tempo, Russell T. Davies (Years and Years, It’s a Sin), que desta feita mergulhou nas suas próprias memórias de infância diante do pequeno ecrã, para trazer à tona algo do fascínio das soap operas/telenovelas, através de uma das suas rainhas esquecidas.
Num belíssimo texto publicado no jornal The Guardian, onde o criador fala da influência desse tipo de ficção televisiva no seu desejo precoce de escrever guiões, percebe-se o amor pelo projeto (que, aliás, é visível nos detalhes narrativos e no design de produção): “Eram bons tempos. Quando todos viam Crossroads e Coronation Street, as duas grandes soap operas. Nos Anos 60, isto era tudo o que tínhamos, uma rua em Weatherfield e... um motel? O Motel “Crossroads”(“Encruzilhada”)? Por favor, não pensem que motel era uma palavra da moda. Até então, ninguém sabia o que é que significava. É tecnicamente um hotel numa rodovia, que era suposto soar glamoroso.”
De cabelo pintado de ruivo, Nolly era então a figura carismática de Crossroads, essa telenovela com um quê de insólito que a tornou famosa em toda a Grã-Bretanha pela personagem de Meg Mortimer, matriarca dona de um motel que interpretou durante 17 anos, até que alguém se lembrou de menosprezar a sua popularidade e veterania, mandando-a embora. No mesmo texto, Davies recorda o momento: “Eu ainda via Crossroads aos 18 anos, quando fui para a universidade em Oxford, bem a tempo de rebentar o maior escândalo do programa [em 1981]: o despedimento de Noele Gordon. Foi uma demissão pública estranha e barulhenta, humilhante para a personagem e para a estrela.” O caso mexeu tanto com ele que, ao fim de 40 anos, decidiu dar um invólucro doce e dramático aos acontecimentos.
Uma vida de televisão
Mais do que uma minissérie no sentido estrito do termo, Nolly é um drama em três partes, que funciona como relato dos eventos que envolveram o final da carreira da atriz. Pouco antes do tal despedimento polémico, ainda a vemos reinar no set, com a sua peculiar atitude imperiosa e amável, que lhe valeu admiração geral e uns quantos inimigos silenciosos. Tão silenciosos que, ao saber da má notícia através do seu agente, Nolly, incrédula, não fazia a menor ideia do que poderia ter motivado alguém a retirar de um programa a sua estrela proeminente. E a resposta a essa dúvida profunda será a linha que atravessa os três episódios, costurando um desfecho que presta homenagem a uma mulher e ao caminho que conseguiu trilhar por si mesma no showbusiness, um mundo que pertencia aos homens.
Helena Bonham Carter é simplesmente fabulosa no desenho humano de uma personalidade que está sempre a escapar à ideia feita. Não temos uma opinião formada sobre Noele Gordon até que a tenhamos visto em diferentes situações, desde as conversas com velhos amigos a palestras informais para um grupo de jovens atrizes no teatro, sem esquecer as ternurentas saídas noturnas só para ver montras com o melhor amigo (ator na novela e vizinho do lado) e os passeios de autocarro.
Dir-se-ia que um desses passeios ganha mesmo a dimensão de uma cena de antologia: Nolly é reconhecida por todas as mulheres naquele transporte urbano, respondendo com simpatia, e da maneira possível, às dúvidas sobre o destino da sua personagem em Crossroads, até que um indivíduo de meia-idade, ao ouvir a tagarelice animada, se intromete para fazer o comentário desagradável de quem “não tem tempo a perder” com programas para mulheres. Ao que Bonham Carter/Nolly retalia com uma soberba libertação de energia defensiva: “Nós mulheres sentamo-nos a ver soap operas, e somos ridículas, estúpidas, não é? Já os homens têm o pub, o futebol e a cerveja. E essas coisas são importantes, certo? São sérias, válidas, proveitosas. Portanto, os homens podem recostar-se de pernas abertas e olhar para as coisas que amamos com desprezo, o lábio torcido, uma careta. Ah, mas nós fazemos o mesmo, quando entram no quarto, tiram as calças e ficam ali de cuecas encardidas...”. Risada geral no autocarro. Rimos com elas a bom rir. É uma cena de satisfação autêntica, ainda mais pela melodia compacta com que Bonham Carter segura o monólogo.
A excelente escrita de Russell T. Davies torna-se palpável em momentos como este, que mostram também a sua vontade de reproduzir algo do espírito popular da soap opera, envolto num certo brilho nostálgico. Até porque, a emparelhar com isso, a nota que acaba por prevalecer é a da tristeza “felpuda” de Nolly, que vai dos tecidos que enverga aos gestos repetitivos, como o acender dos múltiplos candeeiros cor-de-rosa da casa. Afinal, estamos a assistir a um fechar da cortina em câmara lenta, um último ato inconformado, um sair de cena que merece o seu pequeno golpe de justiça.