No teatro de memórias de Werner Herzog

No teatro de memórias de Werner Herzog

Cada Um Por Si e Deus Contra Todos, autobiografia de um dos cineastas inigualáveis do nosso tempo, é um convite para subir a montanha das suas recordações e repousar sobre o seu pensamento ágil.
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O nome de Werner Herzog, como o de qualquer ilustre criador, é daqueles que se pronuncia tendo sempre presente no espírito um conjunto de ideias. Para começar: risco, delírio, loucura, humor, grandeza, curiosidade, ciência, mistério, natureza, aventura, independência. Mas o homem temerário que muitos amam pelo inglês com sotaque da Baviera, para além de uma persistente atitude interessada pelos mais diversos fenómenos – só nos últimos anos deu-nos documentários como Eis o Admirável Mundo em Rede, sobre a internet, e Fireball: Visitantes de Mundos Sombrios, sobre meteoros e pó cósmico –, também é uma criatura das letras, alguém que nunca deixou de registar as suas vivências bravias em diários, confiando às palavras a energia confessional do momento. Assim, depois de A Conquista do Inútil (edição Tinta da China), sobre o “coração das trevas” que foi o projeto Fitzcarraldo – mais um título que virá sempre atrelado ao seu nome –, e de O Crepúsculo do Mundo (Livros Zigurate), sobre o soldado japonês Hiroo Onoda, acaba de chegar às livrarias portuguesas, pela mão da mesma Zigurate (tradução de Mário Prado Coelho), Cada Um Por Si e Deus Contra Todos, uma espécie de ensaio autobiográfico onde Herzog viaja indisciplinadamente pelos caminhos da memória. 

Não uso a palavra “caminhos” de forma decorativa. Com efeito, Herzog, à semelhança do amigo escritor de viagens Bruce Chatwin, nutre um gosto especial pela caminhada. E também, mas não só, pela quantidade de vezes que se lê “montanha”, “subir” e “doença da altitude” ao longo do texto, sente-se que a pena do autor foi movida por um fôlego de alpinista, uma vontade de nos levar ao cume das memórias, para depois refletir sobre os detalhes da paisagem nelas contida. 

A poesia do insano 

Nascido em Munique em 1942, numa zona pouco depois arrasada pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial, Werner Herzog conheceu cedo a necessidade do movimento: a mãe levou-o, com o irmão Till, para as montanhas (um vale remoto em Sachrang, junto à fronteira austríaca), onde cresceu e se familiarizou com a pobreza sem dramatismos; havia espaço para o idílio. Aprendeu aí a arte do trabalho manual – diz que, só pelo rosto, conseguia reconhecer pessoas capazes, como ele, de ordenhar vacas – e ganhou como herói de infância um daqueles seres dignos de mitologia, um lenhador musculado, de nome Siegel Hans, que um dia tentou puxar do rio, só com a robusteza do corpo, um camião: “Agachou-se e agarrou na secção traseira do camião e, com toda a força que tinha, tentou o impossível. A simples tentativa maravilhava-nos. Os seus músculos e artéria carótida incharam, o seu rosto azulou”. Estaria aqui uma semente de Fitzcarraldo, esse filme sobre o esforço delirante de fazer um barco subir uma montanha? 

Certamente, os elementos da vida de Herzog tendem a confundir-se com o desvario filosófico dos seus filmes. Do avô que enlouqueceu à tia acumuladora, do famoso episódio do sapato ingerido, na sequência de uma aposta com o documentarista Errol Morris, à rodagem de Aguirre, a Cólera de Deus, passando pelas mirabolantes histórias dos excessos do seu intérprete, Klaus Kinski, a quem o realizador dedica quase uma dezena de páginas, a vibração literária desta prodigiosa autobiografia vem do entrosamento natural da dimensão das aspirações de um cineasta com a incapacidade pura e simples de desistir delas. “Não queria viver como um homem sem sonhos”, escreve a dada altura, num dos parágrafos em que relata as incontáveis dificuldades inerentes aos objetos cinematográficos que o caracterizaram. 

Autodidata inequívoco, homem trespassado por uma poesia do real, o alemão por trás das páginas de Cada Um Por Si e Deus Contra Todos deslumbra-nos com a matéria rocambolesca das suas narrações – ou memórias que reveste de outras cores, como às vezes faz questão de salientar. Apenas dele se aceitam frases como “uma vez, encontrei Deus”. Sem piscar os olhos, acreditamos na sua descrição do momento: “Ele estava encostado à ombreira da porta e trazia vestido um macacão castanho gasto com manchas escuras de óleo”. 

Hoje o público mais jovem conhece a “personagem” que é Werner Herzog através da sua voz, de papéis de vilão como o de Jack Reacher (2012) ou aparições como aquela de três episódios na série The Mandalorian. Mas a riqueza deste ídolo pop está muito para além disso: faz-se de um olhar substancial e aventureiro sobre o mundo que nos rodeia. Não conheço outro realizador que, na coerência da sua própria linguagem, conseguisse, numa prosa biográfica, falar de matemática, aerodinâmica, latim, germanística, ecologia, história medieval, cultura clássica e funambulismo sem aborrecer o leitor, pelo contrário, estimulando-o numa lógica desgrenhada de agarrar a beleza dos conhecimentos e dos enigmas... que ele não tem qualquer desejo de desvendar. 

Há um capítulo dedicado às mulheres da sua vida, outro à hipnose, outro a projetos de filmes por concretizar, e até as suas impressões e memórias como encenador de ópera cabem neste percorrer de uma geografia interior. Já sabíamos que a viagem ia ser boa; confirmámos a desconfiança de que ia ser intensa. 

Cada Um Por Si e Deus Contra Todos

Werner Herzog

Edição Livros Zigurate

308 páginas

No teatro de memórias de Werner Herzog
O jogo da tradução de Lobo Antunes que se transformou num vício

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