No pântano de Hollywood

O best-seller de Delia Owens, Lá, Onde o Vento Chora, chega ao cinema em tom de vulgar telefilme: chama-se entre nós A Rapariga Selvagem e falta-lhe até capacidade para gerir o talento dos atores.

Com resultados inevitavelmente muito diversos, há na história do cinema, em particular na produção dos EUA, uma velha estratégia de relação com a literatura: os romances que se tornam best-sellers têm, em geral, caminho aberto para o grande ecrã. Assim aconteceu com Where the Crawdads Sing, de Delia Owens, entre nós traduzido como Lá, Onde o Vento Chora (Porto Editora) chega agora às salas com o título A Rapariga Selvagem.

Sejam quais forem as considerações que se possam fazer sobre a "fidelidade" do filme ao livro (que não li), trata-se, aqui, de observar as especificidades de um objeto de cinema. Como o velho Hitchcock recordava, não há nenhuma relação de causa a efeito entre uma coisa e outra, a ponto de "os maus romances darem grandes filmes". Podemos dizê-lo de modo menos irónico, convocando os mais variados exemplos. Escolho este: Cosmopolis, de Don DeLillo, é um notável exercício literário? Sim, sem dúvida, mas o génio da respetiva adaptação, realizada em 2012 por David Cronenberg, resulta de um labor cinematográfico que não é (nunca poderia ser) uma mera "transcrição" do que está no livro.

O título original propõe uma metáfora "libertadora": o sítio onde cantam os "crawdads" (crustáceo, espécie de lagostim) é um lugar imaginário dos pântanos da Carolina do Norte. Aí conhecemos a personagem de Kya, no seio de uma família marcada pelo comportamento agressivo do pai - ela irá mesmo crescer e sobreviver como essa "rapariga selvagem" a que se refere o título português. Até que a morte brutal do namorado a coloca no banco nos réus, acusada de homicídio...

Encontramos, aqui, algum investimento no trabalho dos atores, sendo inevitável destacar os nomes da protagonista Daisy Edgar-Jones (que está na notável série Normal People, disponível no Prime Video) e do veterano David Strathairn, interpretando o advogado que defende Kya.

Infelizmente, a realização de Olivia Newman vai colecionando lugares-comuns com a serenidade de quem se limita a cumprir o caderno de encargos de um vulgaríssimo telefilme. Aliás, paira sobre o filme todo um esquematismo de representação do "Sul" dos EUA que vai desde o tratamento dos elementos naturais em tom de postal ilustrado (sem esquecer que Kya se "liberta" através dos seus desenhos da natureza), até à apresentação das personagens dos negros em tom de carinhoso paternalismo.

A realização tenta sobreviver através do modelo, também ele tradicional, do "filme de tribunal", faltando-lhe um mínimo de consistência de encenação e montagem para tirar partido do dramatismo do espaço em que decorre o julgamento.

Ciclicamente, a voz-off de Kya surge como uma "compensação" para resolver as pontas soltas da narrativa, acumulando mais lugares-comuns, desta vez através de uma prosa de patético estilo "poético". Fica o paradoxo atual de Hollywood: duas das mais nobres referências do seu passado - a aventura e o melodrama - vão-se reduzindo à monotonia dos super-heróis ou à banalidade criativa de filmes como A Rapariga Selvagem.

dnot@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG