Numa das muitas cartas que, ao longo de décadas, dirigiu ao Rei de Portugal, o Padre António Vieira lamentava remeter uma longa missiva, desculpando-se por lhe ter faltado o tempo para se empenhar em escrito mais curto. Senhor de luminoso verbo, o jesuíta estava ciente de que, na brevidade da prosa, pode haver, afinal, uma contenção que exige ao autor muito esforço e disciplina..Vem isto a propósito do novo título da Coleção “O Essencial sobre”, da Imprensa Nacional Casa da Moeda, dedicado a Natália Correia, com assinatura de Luiz Fagundes Duarte. Se mais não fosse (e é), este livro, que se lê numa tarde, começa por ser um testemunho pessoal sobre Natália escrito por alguém que, como ela, é açoriano (embora da Terceira, sendo Natália da Fajã de Baixo, em São Miguel). “Foi diversa a Natália que eu conheci”, escreve o autor. “Na verdade, para mim, ela era como fossem três. E tudo se passava como se as três se olhassem entre si como se fossem outras. Todas elas assinavam Correia e cada uma se afirmava como açoriana, portuguesa e europeia.” .Embora bem mais jovem do que Natália, Fagundes Duarte recorda vários episódios deliciosos da convivência, nunca banal, com esta mulher que abalou a sociedade portuguesa, baseada na contínua secundarização do papel feminino. Como aquele dia em que Natália lhe terá proposto que lhe comprasse o Botequim do Largo da Graça, última das grandes tertúlias lisboetas. As duas Natálias, a pública e a privada, convergeriam para uma terceira: “A última Natália, a terceira, era a mulher que trazia dentro de si um vulcão que ninguém jamais apagara. É a Natália que vislumbramos na sua poesia completa, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, por ela organizada e prefaciada, contendo por isso a sua derradeira vontade (...); um livro que nos tanto acerca dela como o busto de Martins Correia diz da poeta: Ela está lá inteira, na sua beleza vivida, e assim ficará para todo o sempre.”.Ao testemunho do autor soma-se o de José Manuel dos Santos, antigo assessor da presidência de Mário Soares, amigo pessoal de Natália, que a define como “um ser escandalosamente livre”. “Essa Natália, tão forte, era também muito frágil (…). Vi-a frágil quando não a compreendiam, quando a feriam, quando a ignoravam, quando a esqueciam.”.Mas sendo Luiz Fagundes Duarte um homem da Filologia e da crítica textual (antigo professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tem vasta bibliografia no estudo e edição crítica de obras de Eça de Queiroz, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Vitorino Nemésio, entre outros), este Essencial sobre Natália Correia debruça-se também sobre a obra literária da autora: “Nela encontramos os ecos, pela apropriação dos nomes e das formas reavaliados para por eles exprimir as preocupações do presente, dos cancioneiros medievais, do Barroco, do Romantismo e do Surrealismo.”.O Essencial sobre Natália CorreiaLuiz Fagundes DuarteINCM - Imprensa Nacional Casa da Moeda136 páginas.Mas, como o autor também nota, em Natália a erudição e o apuro formal vão sempre a par do impulso irresistível de confrontar a sociedade patriarcal e as injustiças perpetuadas pela ditadura salazarista: “Natália deve ter sido o escritor português que mais obras teve proibidas pela censura do Estado Novo ou apreendidas pela PIDE, antes ou depois de serem publicadas. Terá sido, também, o único autor que foi censurado depois do 25 de Abril.” E acrescenta, mais adiante: “Se Natália foi, talvez, o único autor português que viu obras suas censuradas antes e depois do 25 de Abril, foi certamente o único que desafiou, aberta e conscientemente, o poder - arcando com as consequências, desafiou Salazar quando ele estava no máximo do seu poder (…) defendeu e aplicou ideias e valores estéticos em literatura que destoavam dos dos escritores da corrente dominante, mesmo entre os meios antifascistas (…)”.Neste voluminho não são esquecidos alguns lances picantes ou rocambolescos da biografia de Natália, que ela, aliás, cultivava com um sentido único de auto-encenação. É o caso do seu segundo, e fugaz, casamento com o norte-americano William Creighton Hyler. Celebrado em Tânger, o matrimónio terá começado a ruir ainda na viagem para os Estados Unidos, mas, ainda assim, a jovem Natália dormiu em hotéis de luxo, reuniu-se com o líder do Partido Socialista dos Estados Unidos, foi recebida por diretores dos grandes jornais, professores universitários de renome e até terá tido acesso à Casa Branca e ao Departamento de Estado. E se, para além de tudo o que dela conhecemos, esta beldade vinda da Fajã de Baixo tivesse, nesse pós-IIª Guerra Mundial, em que a geo-estratégia da Guerra Fria se delineava, trabalhado também como espia. A hipótese é colocada por Fagundes Duarte, que confessa considerá-la estimulante e conforme à aura de femme fatale que Natália gostava de cultivar.