"Não luto para conquistar coisas. Faço o meu trabalho e depois alguém reconhece"

"Não luto para conquistar coisas. Faço o meu trabalho e depois alguém reconhece"

Brunch com João Pinharanda, diretor do MAAT. Professor universitário, crítico de arte, curador, jornalista, adido cultural e diretor do Instituto Camões em Paris. Uma panóplia de papéis que João Pinharanda assumiu em "felizes acasos", como diz, até ser nomeado diretor do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (Maat).
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Passavam três minutos das 11 horas da manhã, confirmadas com uma olhadela rápida para o relógio, quando João Pinharanda surgiu ao meu encontro no sítio combinado, o MAAT Café, para o pequeno-almoço que acompanhou a conversa que alimenta as próximas linhas. Escolhemos uma mesa mais sossegada, resguardada da música de elevador moderna que se escutava e das conversas dos turistas que bebiam café antes de irem ver as peças de Joana Vasconcelos no museu. Já sentados, num canto, encostados à janela, João Pinharanda fez o pedido que influenciou o meu: abatanados e croissants de sementes com queijo e, ainda, um sumo de laranja natural. A conversa começou pela direção do Museu de Arte Arquitetura e Tecnologia (MAAT) que Pinharanda assumiu a 1 de janeiro de 2022, algo que aconteceu com "muita naturalidade". Sem perder tempo explicou que a sua relação com a EDP existe há vários anos: "Já conhecia parte da equipa, já tinha feito uma série de projetos com a fundação EDP. No fundo nunca deixei de cá vir e de ter contacto com o conselho diretivo, fundamentalmente com o Miguel Coutinho e o José Manuel dos Santos, por isso foi uma entrada muito normal".

Antes do MAAT, Pinharanda esteve seis anos em Paris como adido cultural da embaixada de Portugal e presidente do Instituto Camões - o assunto voltará à baila mais à frente na conversa. Esse posto, e os outros, antes e depois do MAAT, aconteceram por felizes acasos, assume na resposta à pergunta provocatória sobre a eventual ambição de dirigir o museu. "Não tenho ambição, todos os postos que tenho ocupado aconteceram porque me chamaram. Mas dizer que não tenho ambições não é bem verdade, é mais correto dizer que não luto para conquistar coisas, devo ter uma sorte extraordinária. Faço o meu trabalho e depois alguém reconhece... ou há uma situação qualquer de reconhecimento... Não pedi para ir para Paris, por exemplo, não pedi para ser professor na universidade ou no colégio onde dei aulas. Mas gosto sempre das coisas que tenho feito e têm sido sempre na linha do que quero fazer. Aliás, se desejo fazer alguma coisa é provável que isso não se realize. Já me aconteceu por três vezes. Acho que tenho uma superstição invertida (risos)",

A conversa continua sobre o MAAT. O convite para assumir a direção do museu chegou quando o diretor da Fundação EDP, Miguel Coutinho (que tal como Pinharanda também foi jornalista e, inclusive, diretor do DN), lhe explicou que na administração havia vontade que fosse ele a assumir o cargo. "Achei que era uma justiça histórica, sem vaidades, na medida em que tudo aconteceu sem qualquer estratégia e planos para o futuro".

Sensações de Moçambique

João Pinharanda nasceu em Moçambique, em 1957, país com o qual mantém uma "nostalgia de sensações". "Vim muito cedo para Portugal, por questões de saúde, dava-me muito mal com o clima em Moçambique. Tive pneumonias e havia o fantasma familiar do meu avô ter morrido de tuberculose. Vim cá fazer os cinco anos. Estive aqui dois anos e, de seguida, voltei. Mas quando o meu pai teve uma oferta de emprego na África do Sul, onde tinha estudado, a minha mãe não quis que deixasse de escrever e falar português e voltei a Portugal para fazer a 3.ª e a 4.ª classe. E, depois, fui eu que não quis voltar. Ainda assim, permaneceu a ideia de poder voltar a Moçambique depois do Liceu". Entretanto, a história acontece. Em Portugal dá-se o 25 de Abril e João Pinharanda fica por Lisboa a frequentar História, na Clássica, no pós-revolução. "Anos maravilhosos", conta. "Muitos dizem que foram anos de balda, mas só foi para quem queria. Tivemos grandes professores, muitos deles regressados de França. E se já éramos francófonos ficamos ainda mais. Claro que lemos coisas que no mundo atual são inúteis, do marxismo ao estruturalismo. Mas fiz trabalhos fantásticos, gostei imenso, e no meu ano havia uma série de gente que tem feito coisas e que é conhecido, como o Rui Vieira Nery, o [Nuno] Severiano Teixeira, o Bernardo Vasconcelos e Sousa. Recordo-me que existiam muitas turmas, éramos 1200 alunos, com aulas de manhã à noite. E, por uma questão revolucionária, tínhamos aulas com alunos mais velhos, o que foi uma convivência incrível".

Em Portugal dá-se o 25 de Abril e João Pinharanda fica por Lisboa a frequentar a faculdade no pós-revolução. "Anos maravilhosos", conta. "Muitos dizem que foram anos de balda, mas só foi para quem queria. Tivemos grandes professores, muitos deles regressados de França.

A seguir à faculdade, Pinharanda fez um mestrado em História de Arte na Universidade Nova. É por esta altura que o jornalismo chega ao seu percurso, mais uma vez, numa coincidência. Alexandre Melo, um amigo de adolescência e seu colega no Colégio Valsassina, por onde ensaiaram escritos e jornais de escola, era revisor do Expresso e, por isso, convidou-o "para fazer umas coisas para o jornal". "Foi por volta de 1983, com o Alexandre, que, entretanto, já morreu, quando o Eduardo Prado Coelho e a mulher, a Teresa Coelho, começaram a fazer umas reportagens sobre a noite de Lisboa. Daí surgiram umas conversas com artistas e entrevistei nomes como o Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft, Pedro Proença". Depois Pinharanda começou a escrever no Jornal de Letras, isto enquanto tirava o seu mestrado sobre abstracionismo geométrico. Depois disso seguiu Vicente Jorge Silva, na criação do Público, em 1990, e nesse jornal escreveu fundamentalmente sobre artes plásticas.

Mas a certa altura algo mudou. "Comecei a ficar cansado de lá estar, sobretudo quando a filosofia do jornal passou a ditar que um jornalista podia fazer qualquer área. Dizia-se até que quem entrevista um artista também pode entrevistar o Einstein. E aquilo fartou-me. Claro que no trabalho do dia a dia e quando estava aos fins de semana fazíamos de tudo". Recorda um dia em que atendeu um telefonema do João César Monteiro que era para um colega de redação: "Apanhou-me e disse coisas alucinantes, num discurso interminável, mas lógico, com bocas e ameaças. Já não me lembro qual era queixa dele, mas não me esqueço desse longo telefonema".

Na altura do jornal Público dava aulas de arte no Colégio Valsassina, a que se seguiu o convite para lecionar no curso de arquitetura da Universidade Autónoma. "Eu era um pedaço chato porque dava umas coisa de arquitetura, mas obrigava os alunos a ler livros, romances, e a ver filmes. Mostrei-lhes a Morte em Veneza. E dava-me especial gozo os livros do Astérix, onde é tudo muito acrónico, uma vez que não havia Coliseu no tempo de Júlio César, foi construído mais tarde, e os alunos tinham que desconstruir isso".

Recorda um dia em que atendeu um telefonema do João César Monteiro que era para um colega de redação: "Apanhou-me e disse coisas alucinantes, num discurso interminável, mas lógico, com bocas e ameaças, já não me lembro qual era queixa dele, mas não me esqueço desse longo telefonema".

Nesta altura a nossa conversa é interrompida. O empregado de mesa veio cumprimentar o diretor do museu, que até então tinha passado despercebido a quem servia. Aproveitando, João Pinharanda pede mais dois cafés e dois petit four de chocolate para o resto da conversa que passa, cronologicamente, para o final dos anos 1990. Na altura, foi-lhe apresentado o empresário António Cachola, que tinha o desejo de fazer uma exposição no Museu estremenho ibero-americano de Arte Contemporânea (MEAC) de Badajoz. Pinharanda ajudou-o a criar uma coleção e a fazer compras de obras de arte que hoje podem ser vistas no Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE). Sublinha que não foi diretor do museu, "é uma figura que não existe nos museus municipais", mas fez a programação daquele espaço "durante três anos". Ainda a colaborar com o Público chegou o convite, através de um colega, para criar um livro de Natal para a EDP. É aqui que começa a relação com a empresa. Que anos mais tarde resultou no convite para a direção do MAAT. "Fiz esse livro sobre pinturas com luz e aprendi coisas muito interessantes. Gostaram muito e no ano seguinte pediram-me para fazer outro livro", recorda. Por essa altura presidente da EDP, Mário Cristina de Sousa, que mais tarde foi ministro da Economia de António Guterres, pediu-lhe para avaliar os quadros existentes na empresa - "tirando três ou quatro pinturas, não havia nada de jeito" - e ajuda para criar uma coleção para a Fundação entretanto criada. "Fizemos compras e instituímos um prémio de desenho e pintura. Com a saída dele para o Governo continuei a trabalhar na EDP, mas foram seis anos complicados, com poucas compras e a fazer exposições com os vencedores do Grande Prémio da Fundação EDP Arte". No total esteve "dez anos na EDP" a prestar serviços na empresa, antes de entrar para o quadro em 2010. Já tinha deixado o Público há uns anos quando chegou o convite para ir para Paris. "Soube que o Embaixador precisava de um adido cultural, convidou uma pessoa que não podia ir, e eu disse logo que ia. A minha mulher trabalhava, e ainda trabalha, na Gulbenkian. Eu não queria ir para Paris sozinho mas deu-se o caso dela estar a organizar a exposição sobre o Amadeo de Souza-Cardoso e conseguimos conjugar as situações - eu fui em 2015 e ela em 2016. Parece que foi tudo combinado, mas foi mais um acaso. Ainda sobre a vivência em Paris, conta que é um meio difícil: "Há um desaproveitamento da parte institucional portuguesa, que tem uma expressão orçamental. Bastava colocar um pouco mais de dinheiro e energia e dar mais espaço ao adido cultural para que a nossa posição em França, que é muito boa, ainda tivesse maior exponencial. A todo o momento os franceses pediam-nos coisas e foi frustrante não conseguir dar respostas a tanta solicitação. Por exemplo, no Instituto Camões tínhamos que pedir emprestado locais para organizar eventos. Pedíamos aos checos ou aos canadianos, porque no governo de Passos Coelho venderam o edifício do Instituto Camões, o que foi enorme uma perda e impossível de recuperar. Resumindo, a experiência de Paris foi um desafio e um enriquecimento pela experiência e pelos conhecimentos que ainda hoje coloco em prática aqui no MAAT".

Entretanto, com mais de uma hora de conversa e já perto do final do pequeno-almoço, perguntei sobre os seus eventuais hobbies. A resposta veio com mais produção cultural: "Já publiquei uns livros de poesia, e um outro, Diário do Confinamento (Ed. Documenta, 2021) sobre os 50 e muitos dias que estive confinado em Paris durante a pandemia. Tenho muita coisa escrita, sobretudo desde 1983, mas tenho um certo pudor em apresentar-me com outra cara. Talvez um dia, quando tiver tempo, organize esses escritos onde estão muitas entrevistas que fiz a artistas importantes contemporâneos para o Público. Mas como gosto muito de ler, prefiro estar a ler do que a organizar e pesquisar papéis". Por fim, acrescenta um gosto pessoal: "Viajar". Mas mesmo em "lazer" não se desvia da arte. "Ainda há poucos dias fui visitar a minha filha [uma das três] a Nova Iorque e arranjei tempo para ir ver galerias e exposições. Não vou aos locais turísticos quando viajo. Vivi seis anos em Paris e nunca fui à Torre Eiffel".

filipe.gil@dn.pt

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