Na despedida, García Marquez exaltou o desejo feminino. Novo livro à venda
No dia em que se soube que seria publicado um romance póstumo de Gabriel García Márquez, Cristóbal Pera, o homem que estudou as várias versões existentes e organizou a edição final, tornou-se alvo da inveja de boa parte dos editores e especialistas em crítica textual do mundo. Assim poderia começar uma história assinada pelo escritor colombiano, Prémio Nobel da Literatura em 1982, se no cerne deste relato não estivesse, afinal, ele próprio e um livro que imaginou, anunciou e intitulou, mas não parece ter chegado a rever.
Vemo-nos em Agosto, assim se intitula a obra posta à venda hoje em dezenas de países, incluindo Portugal (edição da Dom Quixote, com tradução de J. Teixeira de Aguilar) promete ser um dos grandes acontecimentos literários do ano. Indicia-o a quantidade de jornalistas que ontem, terça-feira, acorreram à sede do Instituto Cervantes, em Madrid (de forma presencial ou via streaming), vindos de várias partes do mundo, da Califórnia a Portugal, passando naturalmente por vários países de língua espanhola. “Uma autêntica celebração da Literatura”, como notou Pilar Reyes, diretora editorial da Divisão Literária da Penguin Random House.
A notícia, em boa verdade, não é totalmente nova. No ano passado, em plena Feira do Livro de Frankfurt, os filhos de Gabriel García Márquez (Gonzalo e Rodrigo García Barcha) revelaram que tinham decidido publicar o derradeiro livro do pai, falecido a 17 abril de 2014. Na base desta decisão, disseram então em comunicado, estavam “os muitíssimos e muitos desfrutáveis méritos [da obra] e não existir qualquer elemento que impeça o leitor de encontrar aqui o que mais destacou a obra de Gabo[como era também conhecido]: a sua capacidade inventiva, a narrativa cativante, o seu entendimento do ser humano e o seu carinho pelas suas vivências e suas desventuras, sobretudo no amor.”
Tal informação apanhou de surpresa os meios literários já que a venda do espólio do escritor, após a sua morte, por estes mesmos herdeiros, ao Harry Ransom Center no Texas, Estados Unidos, fazia crer que doravante o seu trabalho inédito passaria a ser sobretudo objeto de estudo por académicos. Mas não foi assim. Neste espólio, estavam cinco rascunhos desta última novela e existia ainda uma última versão nas mãos da secretária do escritor, Mónica Alonso. O procedimento seguinte foi encarregar o editor Cristóbal Pera (que já trabalhara em vida de García Márquez, em livros como Memórias das Minhas Putas Tristes ou na reunião em volume dos seus melhores textos jornalísticos) de dar a melhor forma ao que o escritor, fragilizado pela doença, não chegara a considerar pronto para publicação. Mas, como o filho Gonzalo confirmou nesta conferência de imprensa, “não se pode considerar que este romance seja uma obra inacabada. O final foi confirmado pelo meu pai a Cristobal. O que este fez foi uma espécie de tarefa arqueológica, que comparou as versões umas com as outras.” De resto, em jeito de confidência, Gonzalo confidenciou que tinha longas e profundas “conversas” com os pais já falecidos sobre vários assuntos, incluindo a decisão de publicar o manuscrito.
Anunciado por Gabo
A editora Pilar Reyes recordou, aliás, que, ao contrário do que era hábito seu, García Márquez anunciou publicamente este livro e chegou a ler, perante uma audiência, um breve excerto. Aconteceu em 1999, ao lado de outro Nobel da Literatura, José Saramago, na Casa da América, em Madrid. De resto, também nesse ano, o primeiro capítulo seria publicado pela revista colombiana Cambio, em que o escritor chegou a ser repórter, diretor e proprietário. 25 anos depois, os leitores poderão, finalmente, saber o que aconteceu a esta protagonista feminina, curiosamente chamada Ana Magdalena Bach (embora ainda não tivesse nome na época), que todos os anos, em agosto, viajava para a ilha onde estava sepultada sua mãe.
“Trata-se de um texto consistente com o universo literário do escritor.”, afirmou ainda Pilar Reyes. “São cinco relatos autónomos unidos entre si pela mesma protagonista, uma mulher que decide viver em pleno o seu desejo.” É por isso que a editora apresenta a obra como “um canto à vida, à resistência do prazer apesar da passagem do tempo e ao desejo feminino. Um presente inesperado para os inúmeros leitores do Nobel colombiano.” Abramos então o volume e aventuremo-nos no mundo particular desta derradeira protagonista do escritor: “Todos os anos, a 16 de Agosto, Ana Magdalena Bach apanha o ferry que a leva até à ilha onde a mãe está enterrada, para visitar o seu túmulo. Estas viagens acabam por ser um convite irresistível para se tornar uma pessoa diferente durante uma noite por ano. Ana é casada e feliz há vinte e sete anos e não tem motivos para abandonar a vida que construiu com o marido e os dois filhos. No entanto, sozinha na ilha, Ana Magdalena Bach contempla os homens no bar do hotel, e todos os anos arranja um novo amante.”
Para além de termos a confirmação do amor e do desejo enquanto tema central da obra deste Nobel da Literatura há outros pormenores interessantes neste texto, relacionadas com homenagens que ele quis fazer. Por um lado, ao músico Johann Sebastian Bach e à sua mulher Anna Magdalena Bach (que, como vemos, deu nome à personagem), ela própria autora de umas interessantíssimas memórias, fundamentais para o conhecimento da época e do meio em que ambos viveram. Por outro, a William Faulkner e ao seu romance, Luz de Agosto. Também ele Nobel da Literatura (em 1949), o norte-americano foi uma das grandes influências de Gabo.
Vemo-nos em Agosto inclui ainda um prólogo da autoria dos filhos, em que se procura explicar as circunstâncias em que surge a publicação, uma nota final de Cristobal Pera e algumas páginas fac-similadas do manuscrito original.