Quem se lembra de My Fair Lady? Quem sabe quem foi Audrey Hepburn? E o nome de George Cukor, será que diz alguma coisa aos jovens espectadores de cinema que foram (des)educados a consumir as produções barulhentas da Marvel & Cª.?.A história do cinema musical, sobretudo do que está ligado à produção e à mitologia de Hollywood, tem qualquer coisa de ilusionismo artístico e industrial. Ao longo das décadas, a morte irreversível do musical foi várias vezes anunciada, para vir a ser desmentida por algum filme que, entre nostalgia e experimentação, se mostrou capaz de repor a magia das canções e dos bailados..1964, por exemplo - digamos que não seria o momento mais lógico para um qualquer renascimento do género. Vivia-se a época áurea das “superproduções históricas”, com Lawrence da Arábia e Cleópatra a dominar as bilheteiras, respetivamente em 1962 e 1963. O certo é que o lendário Criterion Theatre, em Nova Iorque, acolheu a estreia de My Fair Lady no dia 21 de outubro de 1964 - faz hoje 60 anos..Foi um dos filmes mais vistos nesse ano, gerando um fenómeno que não é possível dissociar da grandeza, física e espectacular, com que o cinema procurava contrariar os efeitos da cada vez mais forte concorrência do ecrã caseiro da televisão. Em 1961, o também musical West Side Story, com o realismo (ambíguo, sem dúvida) de várias cenas rodadas nas ruas de Nova Iorque, na zona de Manhattan, pareceu anunciar um irreversível adeus ao território clássico do estúdio. Ora, My Fair Lady correspondeu a um verdadeiro regresso às origens, tendo sido inteiramente filmado em Burbank, nos estúdios da Warner Bros., a pouco mais de uma dezena de quilómetros do centro de Los Angeles..A complexidade e sofisticação das filmagens implicou a utilização de seis diferentes pavilhões (stages), numa altura em que a Warner possuía um total de 22. Os meios envolvidos fizeram subir o orçamento de My Fair Lady para 17 milhões de dólares, valor que, até aí, era o mais elevado de um filme rodado nos EUA - por exemplo, Goldfinger, o terceiro título de James Bond, outro dos grandes sucessos de 1964, custou 3 milhões..Luta de classes.My Fair Lady tem como ponto de partida a peça Pigmalião, de George Bernard Shaw, publicada em 1913 - existe (ou existia) no mercado português uma tradução, em edição de bolso, lançada em 1987 pelas Publicações Europa-América..No seu centro está a personagem da jovem Eliza Doolitle (Audrey Hepburn), vendedora de flores na zona de Covent Garden, em Londres: o seu sotaque “cockney”, feliz e exuberante, serve de bilhete de identidade das suas origens modestas, de uma classe trabalhadora pouco abonada, dado aliás confirmado pela figura do pai, Alfred P. Doolitle (Stanley Holloway), empregado na recolha de lixo, quase sempre etilizado com a mesma exuberância e descontração... Até que um dia Eliza é descoberta pelo prof. Henry Higgins (Rex Harrison), estudioso da nobre arte de falar inglês e consagrado professor de fonética. Chocado com aquilo que considera a agressão da língua pelos sons “selvagens” que saem da boca de Eliza, Higgins aposta ser capaz, não apenas de a ensinar a exprimir-se em imaculado inglês, mas também de a fazer passar por uma duquesa nos salões da melhor sociedade londrina....Eis uma fábula social cuja atualidade é tanto mais incisiva e pertinente quanto as mensagens “globais” da Internet, todos os dias ampliadas pelo ecumenismo hipócrita de muitas linguagens televisivas, tendem a sugerir que a comunicação é um espaço homogéneo, sem fissuras nem contradições. No sentido primordial de uma expressão que os políticos passaram a ter medo de aplicar, My Fair Lady é também um conto moral sobre a luta de classes: uma pormenorizada luta de linguagens e, é caso para dizer, porventura contra a depuração procurada pelo prof. Higgins, das formas contraditórias do nosso linguajar - ouça-se atentamente The Rain in Spain, precisamente a canção que condensa todos estes elementos..Escusado será sublinhar que tudo isto adquire uma dimensão tanto mais envolvente quanto as matrizes do filme musical instalam uma belíssima ambiguidade: do cruzamento da secura da fala com a imponderabilidade do canto nasce a alegria do espectáculo. Mais do que isso, encontramos aqui esse misto de candura humana e perversidade temática que definiram o entertainment da idade de ouro de Hollwyood, antes de os promotores de efeitos especiais, apoiados no marketing dos super-heróis, terem renegado a nobreza do seu próprio património narrativo e espectacular..A marca da Warner.Audrey Hepburn e George Cukor durante as filmagens, nos arredores de Los Angeles.My Fair Lady, o musical da Broadway assinado por Alan Jay Lerner (autor do argumento e poemas) e Frederick Loewe (compositor), tinha-se estreado em 1956, com Julie Andrews, Rex Harrison e Stanley Holloway como Eliza, Higgins e Alfred, respetivamente. O sucesso rapidamente transformou o espectáculo em objeto de culto, chegando ao West End londrino dois anos mais tarde. A adaptação para o cinema tinha qualquer coisa de inevitável - essa “passagem”, de uma só vez estética e comercial, define mesmo uma componente nuclear da grande tradição do musical, em particular através dos títulos da Metro Goldwyn Mayer produzidos por Arthur Freed..George Cukor, mestre clássico com experiência no musical - quatro anos antes, assinara Vamo-nos Amar, com Marilyn Monroe -, foi o realizador convocado. Rex Harrison e Stanley Holloway retomaram as suas personagens do palco; Julie Andrews foi “trocada” por Audrey Hepburn. Embora não esquecendo o imenso sucesso do filme, My Fair Lady não foi a “revelação” de Hepburn, já que, pelo menos desde 1953, com Férias em Roma, comédia romântica em que contracenava com Gregory Peck, ela se tinha imposto como um novo “modelo” de estrela de Hollywood, discreta e romântica, em contraste com o estilo mais desafiante e erotizado de Marilyn Monroe..O peso histórico da Warner na evolução do musical está, sobretudo, associado aos tempos heróicos do nascimento do cinema sonoro, a partir de Gold Diggers of 1933, de Mervyn LeRoy, com várias sequelas ainda durante os anos 30. Seja como for, My Fair Lady ficou como um objeto de excelência da fábrica de Hollywood, envolvendo talentos tão especiais como Cecil Beaton, na conceção de cenários e guarda-roupa, e Harry Stradling, na direção da fotografia em Technicolor..No panorama da produção clássica, terá sido o canto do cisne do musical enquanto modelo corrente da grande indústria? Podemos dizer que sim. A história ensina-nos, pelo menos, que My Fair Lady coexistiu com músicas e estilos bem diferentes: 1964 foi também o ano de A Hard Day’s Night, a estreia cinematográfica dos Beatles.