Música clássica, família e emigração portuguesa na Mostra KINO

Está a chegar ao Cinema São Jorge, em Lisboa, mais uma KINO - Mostra de Cinema de Expressão Alemã. Desta quarta-feira até 5 de fevereiro, há uma programação que revela a riqueza das recentes produções de língua germânica.
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A 17ª edição da KINO começa com notas eruditas e uma mulher solitária. Lara, do alemão Jan-Ole Gerster, é o filme de abertura que lança o tom sobre uma programação - organizada pelo Goethe-Institut - recheada de dramas familiares, e onde as personagens femininas se destacam. Precisamente, a que dá título a este filme é uma mãe (Corinna Harfouch) que gastou todas as energias na exigente educação musical do filho, ao longo dos anos, tendo algures bloqueado a sua própria carreira na música.

Seguimo-la num único dia da sua vida: o dia em que faz 60 anos e se prepara para assistir ao primeiro concerto do filho como compositor. Até lá, vamos conhecendo alguém que não é de trato fácil. Ela esquiva-se ao vizinho amável, é indelicada para a namorada do filho e não mostra o sorriso ao ex-marido - só no final se poderão vislumbrar as suas razões para tanta amargura... Ao DN, Gerster, o realizador que vem apresentar o seu filme, e visitar Lisboa pela primeira vez, disse estar particularmente interessado em preservar o enigma de Lara: "Na mesma medida em que eu queria explorar e revelar a personagem, queria que ela permanecesse misteriosa. O meu maior desafio foi mostrar a vida interior de uma mulher que construiu um muro à volta dela e que nunca dá qualquer indicação sobre o seu estado emocional."

Para gerir uma personagem tão azeda e secretamente angustiada, Corinna Harfouch foi uma escolha-relâmpago: "Acompanhei o trabalho da Corinna no cinema e na televisão durante quase duas décadas, mas foi só quando a vi em palco, no teatro, que tive uma epifania sincera - e isto um ano antes de ler o argumento de Lara. Quando o li, pensei imediatamente nela. Na verdade, a minha decisão de fazer o filme ficou dependente do compromisso dela." Perante a justeza da expressão da atriz, percebe-se porquê.

Com um estilo minimalista, sempre a observar detalhes do quotidiano, a câmara de Jan-Ole Gerster tem uma atenção especial ao modo de vida nas cidades, marcado por um traço de insensibilidade. Lara pode ser um modelo de frieza nas relações sociais, mas não será a única. E essa é uma preocupação do realizador: "O sistema capitalista, a perda de confiança na justiça social e na política são provavelmente algumas das razões pelas quais se tem perdido o sentido de compaixão, de bem comum e de gentileza. Michael Haneke refere-se a este fenómeno como a glaciação das emoções, e eu não poderia concordar mais com essa metáfora." Michael Haneke, recorde-se, o cineasta de A Pianista (2001), um filme que apresenta ligeiras afinidades com Lara...

Numa rima perfeita, também a sessão de encerramento da KINO (no dia 5) incide sobre o universo da música clássica. A Audição, de Ina Weisse, protagonizado pela musa de Christian Petzold, Nina Hoss, conta com a história de uma professora de violino que descobre o talento de um aluno a quem vai dedicar todo o seu tempo, negligenciando o seu próprio filho e o marido. Mais um de entre os vários títulos da programação desta Mostra de Cinema de Expressão Alemã - composta por duas dezenas de filmes - que exploram a matéria densa dos vínculos familiares.

De destacar igualmente, dentro do cinema "no feminino", O Chão Debaixo dos Pés, da austríaca Marie Kreutzer, centrado numa jovem mulher que mantém a imagem de uma vida estruturada, ocultando a existência de uma irmã esquizofrénica, e System Crasher, da alemã Nora Fingscheidt, a olhar Benni, uma menina de nove anos com uma energia inesgotável e tendência para ataques de raiva, que passa o tempo entre instituições, famílias de acolhimento e clínicas psiquiátricas.

Por sua vez, a imigração surge como tema que coloca em diálogo duas produções. De um lado, o documentário Eldorado, assinado por um grupo de realizadores, que observa os casos de integração de quatro emigrantes portugueses no Luxemburgo (sessão seguida de debate), do outro, Oray, uma ficção de Mehmet Akif Büyükatalay, que reflete sobre a vivência de um homem turco na Alemanha.

A rematar um programa com diversas vozes emergentes, a secção Foco é este ano dedicada a Ulrich Köhler, um dos nomes mais relevantes do cinema alemão contemporâneo, associado à chamada Escola de Berlim (que começou com a geração do consagrado Christian Petzold, e continuou com Maren Ade e Valeska Grisebach, entre outros). Dele tivemos por cá, no ano passado, In My Room - No Meu Quarto, a sua primeira estreia em Portugal, e agora a proposta é conhecer toda a obra (longas-metragens), que se pode definir como um verdadeiro mapa de personagens errantes.

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