Nascida em 1899, numa sociedade em que às meninas ditas de família se ensinava piano, algum francês e outras artes de bem agradar no salão, Sarah Affonso encontrou nos pais o estímulo indispensável ao início de uma vida artística. Nessa época, as mulheres pura e simplesmente não frequentavam as escolas de Belas-Artes, em boa parte por causa do recurso a modelos nus, alguns masculinos. Mas Sarah foi mesmo e tornou-se discípula de Columbano Bordalo Pinheiro. Mais tarde, ainda apoiada pela família, seguiu sozinha para Paris, então capital de todas as vanguardas estéticas do Ocidente..Sarah Affonso, que nos anos 30, casaria com Almada Negreiros, é uma das 40 artistas portuguesas incluídas na exposição A Tribute to Women, inaugurada no passado dia 6, na Galeria de São Roque (Rua de São Bento, 267, em Lisboa). Para o galerista e colecionador Mário Roque, esta "não pretende ser uma mostra exaustiva de todas as artistas portuguesas ao longo do tempo, mas procura chamar a atenção para as condições de desigualdade em que estas sempre trabalharam, numa sociedade persistentemente patriarcal, que vedava às mulheres o acesso à educação e à cultura." A escolha das obras recaiu sobre peças que pertencem ao espólio atual da São Roque ou que, em algum momento, fizeram parte da coleção e foram adquiridas por particulares. Ao todo são 91 obras, que completam um arco temporal de três séculos e que incluem nomes tão representativos de várias gerações e tendências, como Josefa de Óbidos, Aurélia de Souza, Paula Rego, Vieira da Silva, Maria Keil, Lourdes Castro, Helena Almeida, Graça Morais, Ana Jotta, Graça Pereira Coutinho ou Joana Vasconcelos..Logo na entrada, o visitante encontra o quadro mais antigo da exposição, assinado pela pintora seiscentista Josefa de Óbidos. Mas esta não é apenas mais uma (apetitosa) natureza morta da artista, mas sim, como esclarece no catálogo da exposição, o historiador de arte Vítor Serrão, uma peça raramente mostrada ao público: "Segundo as informações que pudemos recolher, o quadro não figurou nos grandes certames retrospetivos das obras de Josefa de Óbidos (Museu de Arte Antiga, 1949; C. M. de Óbidos, 1948; 1991; Washington, 1993) e de Baltazar Gomes Figueira (Museu de Óbidos, 2006), nem na importantíssima exposição síntese do Seiscentismo português: Rouge et Or -Trésors du Portugal Baroque (realizada no Musée Jacquemard-André de Paris em 2001).".Mário Roque destaca a excecionalidade de Josefa de Óbidos, "num mundo em que o papel das mulheres na arte era o de musa ou o de modelo, um caso ainda mais raro em Portugal, embora em Itália tenhamos artistas, quase contemporâneas dela, como Artemisia Gentileschi." E assim continuou a ser até pelo menos à segunda metade do século XX, frisa Mário Roque. À medida que nos faz a visita guiada da exposição, o galerista vai salientando o caráter excepcional de mulheres como Aurélia de Souza, a própria Sarah Affonso, Milly Possoz ou Ofélia Marques, as três últimas casadas também elas com artistas, respetivamente Almada Negreiros, Eduardo Viana e Bernardo Marques.."Um pouco como aconteceu no estrangeiro, com Camille Claudel, que foi amante de Rodin, ou com Frida Kahlo, casada com Diego Rivera, a sua obra foi durante muito tempo menorizada em relação à deles. Eram as mulheres atrás dos grandes homens. No caso das portuguesas, trabalhavam sobretudo como ilustradoras para revistas e livros infantis e os temas representados inscreviam-se na chamada pintura feminina, essencialmente decorativa: crianças, animais, flores, naturezas mortas....".Esta repartição de papéis no seio de casais de artistas é, aliás, contextualizada no catálogo da exposição pela historiadora Filipa Lowndes Vicente: "Há um dado biográfico persistente nas vidas das mulheres pintoras desde o século XVI - a de serem filhas de homens pintores ou de homens que promoveram a sua educação e formação intelectual e criativa. Por outro lado, a relevância dos maridos, nos casos de casais heterossexuais. Os homens que vivem com as mulheres, muitas vezes também artistas, determinam a construção de uma carreira artística de um modo que não tem paralelo oposto. Não se trata de negociações lineares e óbvias nem de imposições prescritas. São mecanismos inconscientes e invisíveis em que os acordos de poder se jogam no quotidiano doméstico, na partilha das obrigações e nos equilíbrios de egos e ambições.".E maridos artistas que, reconhecendo o talento superior das mulheres, as tivessem incentivado a ir mais longe? "Também temos", diz Mário Roque. "Arpad Szenes com Vieira da Silva, Victor Willing com Paula Rego, Artur Rosa com Helena Almeida. Embora todos eles fossem artistas de grande valor, compreenderam que elas estavam noutro patamar e foram os seus principais apoios.".Nas últimas décadas as mulheres tornaram-se maioritárias nas turmas de Belas-Artes e isso reflete-se na quantidade (e variedade) de artistas nascidas ou reveladas na segunda metade do século XX representadas em A Tribute to Women como Ana Vidigal, Teresa Dias Coelho, Fátima Mendonça, Joana Rosa, Sofia Areal, Bela Silva, Adriana Molder ou Joana Vasconcelos. No entanto, décadas de experiência como galerista levam Mário Roque a concluir que as mulheres, mesmo as mais jovens, ainda têm dificuldade em afirmar-se no competitivo mundo das artes: "Não são tão assertivas como eles na hora de negociar, por exemplo. Têm medo de melindrar, de serem inconvenientes, muitas vezes não querem envolver-se em todo um jogo social em que se tem de participar para singrar, também nesta área. Esta diferença de comportamentos leva mesmo muitas mulheres galeristas a preferirem contratar homens para trabalhar nos seus espaços." E, como exemplo desta diferença de comportamentos, Mário Roque fala de uma artista a que acaba de dedicar uma exposição individual e de que volta a mostrar trabalho também em A Tribute to Women, Luísa Correia Pereira (1945-2009). "Era uma pessoa de difícil relacionamento, e que, por isso, se via vetada por galerias ou mesmo por críticos de arte, que se recusavam a escrever sobre ela. No entanto, tinha uma obra de grande qualidade, muito singular, que possivelmente se tornará bem mais conhecida postumamente do que em vida.".Para além de querer reparar uma injustiça de séculos, patente, como diz, "mesmo nos grandes museus de arte do mundo, como o Prado, em Madrid, ou o MoMA de Nova Iorque, onde as artistas representadas não excedem os 15%", Mário Roque deve esta sensibilidade à mãe, Maria Helena Roque. "Não é por acaso que o desenho reproduzido na capa do catálogo desta exposição, que representa uma mulher a pintar, é da coleção dela. A minha mãe comprava obras da Ofélia Marques, da Sarah Affonso, da Milly Possoz ou da Sonia Delaunay." Seria, aliás, pela mão de Maria Helena que, ainda criança, Mário começou a tomar o gosto pelas visitas a museus, antiquários e feiras de arte em Portugal e no estrangeiro. Um gosto que reforçou quando foi estudar Medicina para Bruxelas, numa época em que "Portugal era ainda um país muito periférico em termos de vanguardas artísticas e culturais.".Depois de uma vida repartida entre o exercício da Medicina (na área da Imagiologia) e a arte, Mário Roque optou definitivamente pela última há seis meses porque lhe era "cada vez mais difícil conciliar as duas com a qualidade que quero ter em tudo o que faço." Mesmo sabendo que a Internet veio mudar muito as coisas desde os tempos em que, com a mãe, percorria as feiras e antiquários deste mundo, move-se sempre pela emoção que uma peça lhe pode despertar: "Sou incapaz de comprar uma peça de que não goste, independentemente de ser ou não de um artista muito cotado no mercado"..dnot@dn.pt