Morreu Francisco Vinagre, "enciclopédia viva do cante alentejano"
"Cuidado, menina, olhe que ele é terrível com as senhoras!", "Ó Chico onde é que meteste o saco com o chapéu?", "Vamos pelo elevador para o Vinagre não ir pelas escadas rolantes". Era notório o carinho e o cuidado com que os elementos do Rancho de Cantadores de Vila Nova de São Bento tratavam Francisco Vinagre. Afinal, bem passados os 90 anos, o cantador estava em todas: nem as mazelas da idade chegavam para o fazer faltar a um ensaio, muito menos a um concerto, a um petisco ou a um copo de tinto com os amigos. Quanto ao elevador, os outros que o apanhassem porque quando olhavam para o lado já o "Chico" Vinagre ia a subir as escadas tranquilamente.
"O Francisco Vinagre era a história do Rancho viva", garante António José Silva. Sem esconder a emoção na voz, o responsável pelo Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento recorda o companheiro que os ajudava quando tinham dúvidas sobre as modas mais antigas. "Desde que as tivesse cantado quando era mais novo, ele sabia dar-nos as indicações, sabia as letras, as nuances da música, tudo. Era uma enciclopédia viva do cante alentejano".
A pouco mais de um mês de completar os 94 anos, Francisco Vinagre morreu na sexta-feira.
"Tinha um gosto pelo cante alentejano fora do vulgar. Quase com 94 anos. Cantava muito bem. Tinha a aptidão de fazer ponto alto. Tinha uma voz excelente", lembra António José Silva sobre o homem que se tornara imagem de marca do grupo quase desde a sua fundação em 1986.
Nascido em Aldeia Nova de São Bento (entretanto "promovida" a vila), Francisco Vinagre fez a sua vida em Lisboa, onde trabalhou sempre como guarda fiscal. Com a reforma surgiu a possibilidade de regresso à terra, com a mulher. O tempo era passado entre visitas ao filho e à neta em Lisboa, temporadas no Algarve, onde tinha um apartamento, e um monte perto de Beja. Viúvo, já passados os 80 anos deu nova oportunidade ao amor, mas os últimos anos, já sozinho, foi junto da família e dos amigos do Rancho que encontrou apoio.
Com mais tempo disponível acabou por dedicar-se a uma velha paixão: o cante. "Ele cantava desde pequenino", explica António José Silva. E mesmo quando vivia em Lisboa Francisco Vinagre aproveitava as férias para voltar a Aldeia Nova, onde fazia parte de alguns grupos improvisados que iam cantar "aqui e ali".
Nos últimos meses, "a vida dele era estar connosco, cantar connosco, beber uns copos", conta o responsável pelo Rancho. Até porque o Vinagre "ia sempre a todo o lado. E sempre bem-disposto". Francisco Vinagre raramente faltava a um ensaio - "mesmo nas noites frias, lá ia ele" -, os companheiros iam buscá-lo a casa porque sabiam como ele adorava cantar. "Às vezes já não aguentava estar ali de pé então sentava-se e cantava sentado", recorda António José Silva.
Os elementos do Rancho já tinham prestado várias homenagens a Francisco Vinagre, com Pedro Mestre, o ensaiador, a convidar o veterano a fazer o alto na música Mercado dos Amores, que dá nome ao seu último álbum a solo. Música com que ambos abriram o concerto de apresentação desse trabalho no Tivoli, em Lisboa, em outubro de 2019.
Apesar de ter passado os últimos tempos já no lar, Francisco Vinagre ainda não tinha desistido de estar com o Rancho no concerto que chegou a estar agendado para 20 de março no Centro Cultural de Belém e entretanto adiado para julho. "Ele estava convencido que ia ao CCB! A última vez que o fui visitar ainda me disse: 'quando é que é aquilo lá em Lisboa, é que eu quero ir também'".
E na hora da despedida, o cante não podia faltar. Apesar das medidas de segurança necessárias em plena pandemia de covid-19, os companheiros do Rancho não deixaram de se despedir do amigo. "Cantámos uma cantiga que ele queria que cantássemos no funeral dele. E que vai fazer parte da lápide dele". A letra reza assim: Eu sou devedor à terra/A terra me está devendo/A terra paga-me em vida/Eu pago à terra em morrendo.