Moita Flores: "Não consigo escrever sobre um evento que causa tanta repugnância como esta guerra"
A dedicatória de A Despedida de Ulisses, o mais recente romance de Francisco Moita Flores, é para o pai: "Que a Covid levou sem permitir um último abraço." A narrativa pode ou não decorrer dessa despedida que foi impossível ao autor fazer, e conta uma história como pode ter sido a de uma entre as mais de vinte mil vítimas mortais da pandemia. O protagonista é Ulisses, um contínuo de um dos ministérios da Praça do Comércio, em Lisboa, que começa o livro a despedir-se de uma vida passada naqueles corredores. Sentado a uma secretária e a servir os ministros que vão passando pela sua vida, desde as autoridades do Estado Novo até às da Democracia, lugar onde Ulisses aproveita para fazer uns desenhos nos tempos livres - e em casa também -, a única paixão séria que teve desde criança, mas que a pobreza nunca permitiu desenvolver. A necessidade de ganhar a vida impediu que em jovem prosseguisse estudos artísticos e, como muitos dos portugueses que não tiveram possibilidade de sonhar em tempos de ditadura, se realizasse de uma forma que não a de ir vivendo, casar-se e criar uma família, que já teve outros direitos.
Podia pensar-se que é apenas um romance, mas o que este livro conta é uma História de milhões de portugueses que se viram reduzidos à sobrevivência durante grande parte do século XX. Ulisses aceita o passado e a reforma em que entra logo na primeira página, o momento para recuperar uma segunda vida, a do artista que nunca deixou de ser. O que não estava nos seus planos era a pandemia que dias depois se impõe à humanidade, um contar que faz lembrar aos leitores muito do que viveram nos últimos dois anos.
Autor de quase quatro dezenas de romances e guiões para televisão, quase sempre com a História em fundo, não lhe foi preciso inventar mais do que umas vidas para as personagens - afinal os acontecimentos bastam para o cenário. A forma como foram recriados oferece, enquanto se passam as páginas, muitas memórias recentes, sorrisos amarelos e uma análise mais crítica que rareou nestes dias que ainda estão por ter um fim.
Esta é a história sobre uma das vinte mil vítimas mortais da covid-19. Não podia deixar de ser escrita?
Foi demasiado excessiva a experiência que vivemos. Senti a necessidade de deixar um testemunho sobre o tempo da pandemia, criando duas personagens asfixiadas pelo tormento da cerca sanitária e dedicando-o ao meu pai que a covid levou. É certo que ainda não nos libertámos definitivamente da pandemia, mas é a altura de surgirem os testemunhos.
Escolhe como protagonista um contínuo que se reforma no início da pandemia para retratar o caos vivido durante o confinamento. Dos poucos que tem uma visão sensata e pouco habitual nos últimos dois anos. Ele não merecia um melhor final?
O final desejado por qualquer ser humano é escapar ao esquecimento, garantir a imortalidade, não ser subjugado pela amnésia que a morte traz no seu ventre. Por outro lado, procurei que a sensatez fosse uma característica do protagonista num mundo que deixou de ser normal e entrou em descompensação mental. Todos nós, embora uns mais do que outros, foram tocados por esta atmosfera bizarra de quase não-existência. O protagonista salva-se através da sua paixão pela pintura.
Este é um romance filho do confinamento. Era difícil fugir ao tema?
Começou a ser planeado nas primeiras semanas de confinamento que, praticamente, coincidiu com o primeiro Estado de Emergência. De súbito, o país parou. As cidades e as vilas fecharam. Os campos entraram em recolhimento. E nós submetidos a um isolamento que crescentemente se tornou numa enorme solidão. Foi deste universo complexo de silêncios que surgiu o romance.
Decidiu escrever por razões autobiográficas?
Não é autobiográfico, embora utilize a experiência que vivi para suportar a narrativa com predominância para a sensação de estarmos ausentes dos nossos próprios corpos. Sem um toque, um beijo, um abraço. Sem um encontro de amigos. Tão vazios que deixámos de fazer sentido.
Citaçãocitacao"A visão de império de Salazar não passava de retórica. Um império maltrapilho que correspondia a uma País pobre e analfabeto. Fechou-nos num confinamento político que nos arredou ainda mais do desenvolvimento", Francisco Moita Floresesquerda
O relato mostra muito do que foi a realidade familiar e social do país neste período. Pretendeu deixar um registo para a história sobre o que se passou?
Tive essa preocupação. Embora se trate de uma ficção, muito liberta da preocupação histórica, segue os primeiros seis meses de pandemia com alguma ordem cronológica e deliberadamente datada.
Apesar de há pouco mais de um século o mundo ter vivido a "espanhola", bem como Portugal, esperava ver na sua vida a repetição de uma tragédia que conhecia apenas de testemunhos?
Tenho uma memória muito presente da "espanhola". Um dos meus avós, que era um jovem em 1918, foi requisitado para ser coveiro. Foi uma experiência que o marcou muito e repetia muitas vezes as histórias e os medos das populações dessa época.
Mais tarde, estudei essa pandemia, possivelmente influenciado pelos seus contos. Confesso que nunca imaginei que passaríamos por uma situação tão brutal. O conhecimento científico evoluiu de tal forma ao longo do século XX que não esperava poder ser tão avassalador. Julgo que será um tempo que ficará na memória de todos.
Foi fácil a escrita de tão vivida ou sentiu necessidade de substituir partes da realidade por outras mais criativas?
A realidade, pela força com que se impôs, rompendo com práticas, comportamentos, modificando atitudes, asfixiando os quotidianos, foi um excelente campo para a sementeira. É sobre ele que criei a trama ficcional sobre a família de Ulisses e Florência.
Os leitores foram bombardeados com milhares de horas de emissões televisivas. Como viu o papel da informação?
A informação dissolveu-se no mar infinito dos comentários e das redes sociais. Ficou sem condições para romper o crescimento das dicotomias, das paixões, da politização. Eduardo Lourenço escreveu no Labirinto da Saudade que o problema do nosso atraso se deve muito ao facto de termos aceitado todas as atas do Concílio de Trento. Tem razão. O tempo pandémico dividiu-nos ainda mais radicalmente na crença nas verdades mais impuras.
O protagonista conviveu com vários governos de antes e de depois do 25 de Abril, mas não os diferencia assim tanto. É a sua opinião também?
Não sou tão complacente. Ele olha a política como um poder que vive acima da sua vontade. Não creio que seja assim. O 25 de Abril é o momento mais importante da minha vida, depois do nascimento dos meus filhos e netos e, pela minha própria natureza, sou incapaz de partilhar da placidez do protagonista.
Foi impossível fugir às loucuras dos portugueses como a do açambarcamento de papel higiénico. Encontrou uma explicação para esta estratégia de sobrevivência nacional?
Começo a história com esse fenómeno que, ainda hoje, não percebo. Sabia-se, pela informação disponível, que se tratava de uma doença do foro respiratório. A espontaneidade furiosa desse açambarcamento de papel higiénico e de latas de conserva ainda espera a reflexão de um psicólogo social.
Uma pandemia que serve de corolário a toda a história portuguesa dos séculos XX e XXI. Principalmente, da bandalheira política?
De certa forma, para revivermos o caciquismo e o tribalismo que cruzou o Liberalismo que usurpou os valores fundadores do viver democrático, transformando num negócio de famílias. Basta ler Garrett, Camilo, Eça ou Ramalho Ortigão para percebermos como nos aproximamos rapidamente dessa decadência que nos degrada. Este abismo para onde caminhamos que desconhece a importância da memória, que privilegia o efémero, que glorifica a superficialidade, que se consome em imagens, produz ignorância e torna servis os incapazes de pensar. Este é o terreno fértil para a multiplicação de caciques predadores da nossa identidade.
Deixa no livro esta frase: "Quantas máscaras existem no País?" Uma quantificação ou uma metáfora para os que nos governam e tratam?
A máscara cirúrgica, que habitualmente usamos como proteção, é apenas mais uma das muitas que se cruzam no nosso caminho. A política-espetáculo exige aos atores metamorfoses estonteantes, imagens poliédricas, onde as palavras são uma espécie de necessidade secundária. Como sublinho no romance, com excesso de ironia, os altos dignitários não falam quando o país precisa. Apenas quando os seus cabeleireiros e maquilhadoras autorizam.
Não resiste a colocar Salazar como um governante tacanho. Quer vincar algo que muitos tentam esquecer tanto quanto à pessoa como ao seu legado?
Salazar é uma figura peculiar. Que adorava o vinho que produzia em Santa Comba Dão e que os amigos mais próximos bebiam por pudor, considerando que era uma zurrapa. Não tinha uma visão do mundo. Nem o conhecia. Nunca visitou as, então, colónias portuguesas. A sua visão de império não passava de retórica. Um império maltrapilho que correspondia a um país pobre e analfabeto. Fechou-nos num confinamento político que nos arredou ainda mais do desenvolvimento. Cercou-nos numa censura duríssima que empobreceu o conhecimento e a nossa cultura durante gerações. Foram inúmeros os escritores, realizadores, jornalistas que viram as suas obras proibidas. Uma lástima, tanto tempo perdido.
A invasão da Ucrânia também dará um futuro romance, já que parece ser uma segunda pandemia?
A guerra repugna-me. É uma aversão visceral que me inibe de pensar. Aquilo que Putin está a fazer na Ucrânia é qualquer coisa de tão brutal e terrífico que nem consigo refletir sem me emocionar. Não consigo escrever sobre um acontecimento que me causa tanta repugnância como esta guerra.