Mia Couto: "A nova geração de Moçambique já não sabe o que é a PIDE"
Intitulado O Universo Num Grão de Areia, o novo livro de Mia Couto reúne em 270 páginas mais de duas dezenas de textos que disse perante várias plateias ou escreveu a propósito de acontecimentos. O autor moçambicano concorda que este é um livro de textos escritos para serem ditos e por essa razão manteve "um tom coloquial e de intervenção", explicando logo no início essa condição.
Não são contos nem novelas, mas alguns dos textos aproximam-se disso devido ao registo em que foram escritos e, mesmo que Mia Couto confesse que "tive que os retocar para que fossem lidos como escrita", não divergem muito daquilo a que acostumou o leitor: "Não sei escrever nem falar de outra maneira pois sou especialista em coisa nenhuma. Muitos destes textos resultam do facto de ter sido chamado a intervir em áreas que nem são as minhas, portanto o que pretendo é manter sempre uma aproximação pelo lado poético e mais leve dos assuntos."
Exemplo dessa diversidade de plateias é o texto que fez num congresso de neurociência: "Eu fui para lá com muito medo porque hoje o foco está sobre os neurocientistas, que são quem vai salvar o mundo e levam-se muito a sério. Resisti a fazer a conferência de abertura noutros moldes que não os deles e resultou, pelo que me pareceu."
Antes da apresentação de O Universo Num Grão de Areia que será feita pelo presidente da República esta quarta-feira na Fundação Gulbenkian, pelas 18.00, o escritor Mia Couto conversou com o DN sobre o livro e explicou a razão porque edita estas coletâneas de textos de intervenção: "Quero manter em livro um mundo que passa pela minha intervenção cívica; para mim não basta a minha intervenção como escritor, embora esta seja fundamental." E remata: "Estou em certos locais como cidadão e só acidentalmente como escritor."
Em face de livros tão diferentes, de intervenção, poesia e ficção, o leitor acha que existirá um único Mia Couto ou vários mias coutos?
Espero que o leitor perceba que é um único autor que tem de falar em diversas situações e, por vezes, até mudo o texto quando vejo como é a plateia. Se o escritor não for capaz de romper certas fronteiras, poucas pessoas o serão. No fundo, o escritor não fala para um público mas para o mundo que está dentro dele e para as pessoas que o habitam. A arte será encontrar dentro do universo pessoal do escritor esse mundo diverso, sendo que cada um acha que o escritor está a falar para ele mas na realidade está a falar para os seus próprios fantasmas.
A palavra Brasil aparece em muitos textos, as palavras 'Fernando Pessoa' também, mas a palavra Portugal é rara. Está menos focado neste país?
Tem mais a ver com as circunstâncias. Todos os anos vou ao Brasil e fico lá três ou quatro semanas a fazer conferências, daí que quando olhei para o que tinha como coleção de textos acontecesse que a maior parte eram no Brasil. Foi um acaso, não existe nenhuma intenção.
Deixou muitos textos de fora?
Sim, muita coisa. Alguns porque repetiam um pouco os assuntos e outros porque perderam a atualidade. O tempo mata certos textos, como os de mais intervenção sobre a realidade moçambicana que fiz para jornais.
O livro começa com a memória sobre o ciclone que devastou a Beira. Era inevitável?
Foi um texto que escrevi quando o livro já estava organizado, mas era meu dever registar. O texto foi publicado num jornal inglês e não existia uma versão em português.
Recorda um anterior ciclone que passou quando era criança. As memórias desse tempo chocaram com a deste ciclone?
Este ciclone mais recente fez-me recear ter perdido a infância, porque o lugar podia ter desaparecido. Um lugar são as construções que fazemos e inventamos e, mesmo estando lá as casas destruídas, faltava qualquer coisa na minha relação de identidade. A Beira era um espelho que devolvia esse tempo em que fui criança, tanto que quando lá fui a primeira vez não consegui sair do aeroporto porque imaginei ainda pior do que aquilo que estava a acontecer. Quando regressei três meses depois, já encontrei uma cidade num estado menos trágico.
Fala de muitas viagens, até de um Moçambique colonial. Esse é um tempo que já todos esqueceram ou desconhecem?
Acho que se está a perder essa memória - num sentido bom e mau. Uma parte dessa memória deveria estar salvaguardada e pertencer à História e à memória coletiva. Para o livro que estou a escrever, tive que visitar uma antiga sede da PIDE na Beira. Quando cheguei lá, perguntava sobre esse assunto e ninguém sabia o que era a PIDE. A nova geração de Moçambique já não sabe o que é a PIDE e isso é preocupante, pois é preciso conhecer para que não se repita. Neste momento, a preocupação com outros países que estão em Moçambique, como a China, já não é saber quem é o outro porque não os podemos culpar pelo funcionamento de Moçambique. A economia não foi descolonizada e continua a ser de serviços, fazendo com que a riqueza gerada seja transferida para outro lado qualquer porque é baseada na existência de matéria-prima. Na verdade, ainda falta que a economia seja descolonizada do ponto de vista do seu modo de nos pensarmos, ou seja, os pilares do pensamento ainda estão profundamente enraizados na época colonial.
Critica que se veja a História com H maiúsculo e faltem as pequenas histórias. Só a literatura as conta?
Os moçambicanos vivem a oralidade e são muito produtores de pequenas histórias. Estas circulam e toda a maneira de dizer e pensar em o país funciona é através dessas pequenas histórias. A questão é como é elas se convertem numa versão adotada e partilhada pela sociedade, porque isso não existe. Há pouco trabalho feito de maneira sistemática em torno das várias oralidades, povos e culturas, originando várias versões das coisas. Nesta última trilogia que fiz - sobre Gungunhana -, coloco esta questão pois existem várias versões sobre aquele império e não se fixa a verdadeira. Quem fixa a realidade é o vencedor e a elite moçambicana não escolhe a versão para dizer o que foi o passado.
Não está a haver uma alteração política em Moçambique?
Sim, uma alteração que ainda precisa de ganhar mais força e visibilidade. Houve, pelo menos, uma intenção deste Presidente em se demarcar de uma linha que estava instituída mas ainda há um percurso para que a nova proposta fique consolidada.
Relaciona num dos textos a desilusão dos jovens tunisinos perante a política com os de Moçambique. É semelhante?
Acho que isso está a acontecer em todo o mundo e as novas formas de comunicação revelam outras figuras que não tinham visibilidade, mostrando a falência, por exemplo, dos partidos e dos sindicatos. Há também muita coisa no domínio do absurdo, como o que aconteceu no Brasil e nos EUA, sendo que neste último caso houve até comunidades negras que aderiram às políticas do Trump. A diversidade sempre esteve presente, no entanto hoje, para um certo setor mais conservador da população, isso corresponde a uma diferença da essência e dizem: 'eu sou essencialmente diferente de um cigano ou de um negro porque há uma entidade biológica e não uma construção social e da cultura. E esses que são diferentes querem tomar o meu lugar e derrubar-me, sendo vistos como uma ameaça. Essa é a grande construção do medo a partir daquilo que é olhar o que é adverso à diversidade.
Quando escreve estes textos pensa-os diferente se for para um público brasileiro, português norte-americano?
Não, a única coisa que faço diferente é quando falo em casa, em Moçambique, e vou por caminhos que quando passam a livro precisam de ser refeitos no texto porque têm referências muito localizadas.
A sua intervenção pública já lhe criou problemas. Não vai voltar a acontecer?
Os problemas que me foram causados não me fizeram recuar. Este é o terceiro livro do género e são apenas textos de intervenção - não são ensaios. O próximo livro será sobre a minha infância na Beira e a minha relação com o que foi desarrumado com a tragédia do ciclone.
Mia Couto
Editorial Caminho
270 páginas
Apresentação de Marcelo Rebelo de Sousa na Fundação Gulbenkian esta quarta-feira, pelas 18.00