"Mestres do Ar": irmandade em tempos de guerra
"Nunca nada conseguirá substituir o companheiro perdido. Não se inventam velhos camaradas. Nada substitui a riqueza de tantas recordações em comum, de tantas horas más vividas juntos, de tantas desavenças e reconciliações, de tantos batimentos de coração. Essas amizades não se reconstroem. Se plantamos um carvalho, será um absurdo julgarmos que não tardaremos a abrigar-nos debaixo da sua folhagem. (...) Um a um, os companheiros vão-nos privando da sua sombra.” O dono destas palavras, Antoine de Saint-Exupéry, conheceu bem o seu significado. Piloto francês que se tornou escritor (conhecido sobretudo pel’O Principezinho), deixou-nos vários relatos românticos, poéticos e realistas da experiência da aviação, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, altura em que escreveu Terra dos Homens, uma reflexão sobre essa vida nos ares e os tesouros que ela dá e tira, onde se lê o excerto citado (a tradução é de Maria Georgina Segurado, Publicações Europa-América).
Se recorro à beleza das palavras de Saint-Exupéry - desaparecido ele próprio numa missão em 1944 - para introduzir ao leitor Mestres do Ar, é porque, ao longo dos nove episódios desta terrível e maravilhosa série, o medo mais constante e mais vezes confirmado consiste na morte do companheiro de alguém. Naquele vazio deixado pelos aviões que não regressaram à base, e pelos jovens que não puderam continuar a galhofa do dia anterior. Um a um, vão-se privando da sombra uns dos outros, do aconchego da camaradagem, do saber que estão juntos na hora da aflição.
Já era isso que tinha feito de Irmãos de Armas e The Pacific as melhores séries americanas sobre a Segunda Guerra Mundial. Uma compreensão profunda de que o horror da morte, naquelas circunstâncias, vem acompanhado da nobreza da amizade, dos laços que se criam em contexto de infortúnio. E se Masters of the Air partilha fortemente dessa perspetiva é porque tem como produtores executivos Steven Spielberg e Tom Hanks, a mesma dupla responsável pelas outras duas séries, para além de surgir como mente criativa do projeto um dos argumentistas de Irmãos de Armas, John Orloff.
Da terra e do mar passa-se então para o inferno do espaço aéreo. A série arranca na primavera de 1943, apresentando o 100º Grupo de Bombardeiros (apelidado de “The Bloody Hundredth”...), primeiro através de dois majores bem-encarados e melhores amigos: Gale, mais conhecido como Buck, e John, mais conhecido como Bucky. Uma piada interna, claro. Respetivamente interpretados por Austin Butler (o Elvis que foi aos Óscares o ano passado) e Callum Turner, estas personagens são o exemplo perfeito de temperamentos contrastantes e complementares. Enquanto Buck se move com um charme de equilíbrio e vagar, qual herói resistente a qualquer vício, Bucky representa o homem impetuoso, pronto para a ação, mas menos preparado para o impacto emocional desta, encontrando refúgio na bebida e num estilo agitador.
Os dois poderiam ser a alma de Mestres do Ar, mas a série, a cumprir os preceitos da sua linhagem, ergue-se sobre o drama de um coletivo militar. É por isso que os primeiros episódios não têm propriamente protagonistas ou estrutura narrativa: estamos a mergulhar no ambiente geral de hormonas e coragem daquela juventude, entre conversas, cervejas, danças com raparigas bonitas, cartas e batalhas aéreas violentíssimas, que vão reduzindo as caras conhecidas, diminuindo o bando de pássaros mecânicos que voam na mesma direção. Um a um, os companheiros vão-se privando da sombra uns dos outros.
Assim, com um menor número de personagens, mais ou menos a partir do quarto episódio, Mestres do Ar passa a seguir individualmente aquelas que, tendo saltado de pára-quedas dos seus aviões despenhados, sobrevivem atrás das linhas inimigas. Altura em que o cronista desta irmandade aérea, Harry Crosby (Anthony Boyle) - a voz que escutamos em off, e que agora trabalha a partir de um escritório - reflete com outra gravidade sobre as perdas humanas e como a guerra alimenta um monstro dentro dos homens. Se houver dúvidas de que não se trata aqui de glorificar a guerra, a prova está na mudança que se vai operando no semblante deste militar, e na crueza com que as sequências de batalha mostram a carne para canhão. É também já perto do fim que entram em cena os Red Tails (grupo de pilotos afroamericanos), último recurso da Força Aérea dos Estados Unidos, que reprimiu o seu racismo sistémico perante a hipótese de perder a guerra.
Sem qualquer intenção de “modernizar” a abordagem épica de um conflito já muito retratado, Mestres do Ar impõe-se através de algo cada vez mais raro nos modelos televisivos: uma firmeza clássica que coloca a textura da humanidade acima de qualquer tentação estilística. Mesmo com o primor técnico que hoje em dia permite intensificar as cenas dentro de um avião de combate (e isso acontece aqui), é nos rostos apreensivos, nos enjoos e nas palavras de agonia ou alento daqueles rapazes que a câmara encontra a razão de ser da sua presença. Uma postura antiquada que começa logo no genérico de abertura, com um tema devidamente orquestral, câmara lenta, aviadores em pose, olhares direcionados para o horizonte e pores-do-sol que ficariam bem numa sala de espera. Não há que ter vergonha: a elevação de sentimentos que atravessa a série de uma ponta à outra, a sua bravura de grande produção à antiga, e ênfase na fraternidade, são ingredientes de uma visão profundamente desencantada da guerra, com homenagem aos que perderam os seus companheiros.
Três séries a (re)ver, a propósito de Mestres do Ar:
IRMÃOS DE ARMAS (2001)
HBO Max e Netflix
Baseada no livro homónimo do historiador Stephen A. Ambrose, Band of Brothers é amplamente considerada a melhor série jamais feita sobre a Segunda Guerra Mundial. Uma criação de Steven Spielberg e Tom Hanks, na sequência da sua colaboração em O Resgate do Soldado Ryan (1998), que acompanha o percurso dos soldados da companhia “Easy”, 2º Batalhão, 506.º Regimento de Infantaria Paraquedista da 101ª Divisão Aerotransportada, desde a sua fase de treino até ao fim da guerra, passando pelas batalhas mais importantes na Europa. É um hino aos rapazes amedrontados, à irmandade que cresce diante do perigo e à coragem coletiva. Mas não um hino com floreios românticos: a autenticidade humana que reveste cada um dos 10 episódios vem dos relatos em primeira mão dos sobreviventes dessa companhia, conhecidos no final da série. Um compromisso com a veracidade histórica que evita a todo o custo a filosofia barata no campo de batalha. São homens e moços de carne e osso que ali estão, agarrados às armas e ao indizível que os une nos piores momentos. Venceu seis Emmys, incluindo Melhor Minissérie e Melhor Realização.
THE PACIFIC (2010)
HBO Max e Netflix
Depois do sucesso de Irmão de Armas, Spielberg e Hanks juntaram esforços novamente para produzir outra série sobre a Segunda Guerra Mundial, desta feita, pelo ângulo do teatro de operações do Pacífico, e partindo das memórias escritas de dois fuzileiros navais americanos. Mantendo a premissa do coletivo, The Pacific foca-se nas experiências de três jovens fuzileiros, desde a primeira batalha contra o Japão, em Guadalcanal, até à grande vitória que pôs fim à guerra. Trata-se de outra frente do conflito, de outras expressões de sobrevivência, que se traduzem num justíssimo prolongamento espiritual de Irmãos de Armas - a terceira perspetiva é dada agora por Mestres do Ar. Também The Pacific brilhou nos Emmys, com oito estatuetas, incluindo Melhor Minissérie e Melhor Casting.
FIVE CAME BACK - CINCO QUE VOLTARAM (2017)
Netflix
Série documental baseada no livro do jornalista Mark Harris, Five Came Back: A Story of Hollywood and the Second World War (entre nós publicado pelas Edições 70, com o título Os Cinco Magníficos), este é um olhar sobre a aventura de John Ford, George Stevens, John Huston, William Wyler e Frank Capra no esforço de captar imagens da Segunda Guerra para a posteridade. Cinco dos grandes realizadores de Hollywood que se alistaram nas forças armadas, movendo-se nas três frentes (terra, ar e mar), em luta conjunta pela preservação da memória - sobretudo, afirmando o cinema como a sua principal arma de combate. Em três episódios repletos de imagens de arquivo, com narração de Meryl Streep, as vozes de Steven Spielberg, Francis Ford Coppola e Guillermo del Toro, entre outros, ajudam a contar estas histórias.
Melhor ainda é combinar o documentário com a leitura de Os Cinco Magníficos, onde se encontram relatos que nos levam de volta à essência de Mestres do Ar: “Quando [William] Wyler chegou à base, quase metade dos seus trinta e seis aviões tinha sido abatida ou estava em reparações. (...) No dia 26 de fevereiro de 1943, pouco antes da alvorada, os aviões estavam prestes a partir em missão, o bombardeamento de Bremen, no noroeste da Alemanha. Wyler ficou tão ralado que escreveu uma carta breve a Talli antes da descolagem: ‘Todos os meus pensamentos vão para ti e para as crianças, pelo sim, pelo não. Mas voltarei. Amo-te, querida. Willy.’” Sempre o medo de morrer.