Arieh Worthalter no papel de Pierre Goldman: retrato de "um idealista revoltado"
Arieh Worthalter no papel de Pierre Goldman: retrato de "um idealista revoltado"

Memórias de uma guerra que não acabou

Evocando o julgamento de Pierre Goldman, em finais de 1975, O Processo Goldman, realizado por Cédric Kahn, supera as convenções do chamado “filme-de-tribunal”: a história da militância política, dos crimes e da confissão do protagonista é indissociável de uma subtil reflexão sobre a França pós-Maio de 68.
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Magnífico filme de abertura da Quinzena dos Realizadores, em Cannes/2023, agora lançado nas salas portuguesas, O Processo Goldman convoca uma personalidade e uma época histórica cuja complexidade não cabe nestas linhas. O julgamento de Pierre Goldman (1944-1979), em finais de 1975, excedeu a avaliação dos seus crimes, transfigurando-se num processo visceralmente francês de reflexão colectiva — no limite, um dramático balanço político, indissociavelmente afectivo, das convulsões da década de 60, com inevitável destaque, factual e simbólico, para Maio de 68.

Cédric Kahn, realizador e co-autor do argumento (com Nathalie Hertzberg) é o primeiro a ter consciência do desafio narrativo que consiste em revisitar o julgamento daquele que, tendo sido um ícone hiper-activo da esquerda radical francesa, deixou também um legado de escritor e jornalista. Assim, Goldman escreveu um livro de memórias sobre a sua condição de filho de uma família de judeus da Polónia tragicamente marcada pela violência nazi (Souvenirs obscurs d’un juif polonais né en France, ed. Le Seuil, 1975) e foi colaborador do jornal Libération, fundado em 1973 por Jean-Paul Sartre e Serge July.

Kahn consegue resultados tanto mais intensos e perturbantes quanto o seu trabalho, além de não se esgotar num inventário banalmente determinista, à maneira de um vulgar telefilme “histórico”, envolve uma ambição a que talvez possamos chamar jornalística. De tal modo que, ainda que confinado à sala do tribunal, o filme vai ecoando as muitas atribulações da vida de Goldman, do seu envolvimento com a guerrilha de Che Guevara até à condição de revolucionário desiludido que, no pós-68, regressado a França, vai assaltando farmácias para ter algum dinheiro.

Ator & personagem

Arieh Worthalter, ator francês (nascido em Paris, em 1985), é assombroso na composição de Goldman — apetece dizer que a sua composição justifica que descubramos o filme. Isto também porque, entenda-se, não há na mise en scène de Kahn qualquer tentativa de “depuração” da personagem, seja no sentido de demonização histórica ou canonização moral.

Interpretado por Worthalter, Goldman é, de uma só vez, um ser que transporta os traumas da sua família judaica e um militante radical que acaba desiludido com aquilo que considera a traição dos seus ideais. Mais do que isso: um homem amargo, de temperamento intempestivo, que reconhece os crimes que cometeu e também um réu que não abdica de proclamar a sua inocência face a uma (apenas uma) das acusações que enfrenta.

O Processo Goldman está longe de ser um típico “filme-de-tribunal”, o que não o impede de ter como motor dramático a necessidade de prova de um crime muito concreto: num dos assaltos, em 1969, numa zona de Paris frequentada por Goldman, duas empregadas de uma farmácia foram mortas a tiro. Tendo já cumprido alguns anos de prisão (durante os quais escreveu o seu livro), Goldman apresenta-se no tribunal como alguém que não pretende rasurar a violência do seu passado, mas que não aceita ser punido por essas mortes: “Estou inocente porque estou inocente.”

Um realismo austero

Kahn não é um revivalista, não explora qualquer decorativismo de época para satisfazer o convencionalismo das “reconstituições” lioflizadas que abundam em filmes e, sobretudo, séries de plataformas de streaming. O que não o impede de procurar um visual que, de facto, em termos cinematográficos, evoca o tempo da acção.

Isso é especialmente sensível na admirável direcção fotográfica de Patrick Ghiringhelli, explorando os tons castanhos da sala do tribunal que, por assim dizer, contaminam todo o guarda-roupa de personagens e figurantes — são sinais de um realismo austero que faz lembrar alguns filmes da década de 70, inclusive de produção americana (compare-se, por exemplo, com os ambientes de Serpico, de Sidney Lumet, lançado em 1973). Mais do que isso, a agilidade da câmara não é alheia a uma certa sensação de “reportagem”, com especial incidência no tratamento dos rostos dos actores (vem à memória a referência tutelar de John Cassavetes).

Coincidência curiosa é o facto de, pelo menos no contexto português, O Processo Goldman surgir em paralelo com O Tribunal Marcial dos Revoltados do Caine (Sky Showtime), derradeira realização de William Friedkin, outro drama que se “esgota” no cenário de um tribunal. São muitas as diferenças de contexto e, claro, das especificidades das histórias que se contam. O certo é que ambos os filmes servem de contraponto, e também de resistência, a formas de entendimento e encenação da vida colectiva que, no espaço televisivo, favorecem os mais pueris esquematismos morais e políticos. Estamos perante temas hiper-delicados: a democracia face a actos que desafiam a sua estabilidade e, no caso de Friedkin, as nuances das leis que regem a vida militar — o que não impede, bem pelo contrário, que se dê toda a atenção aos contrastes e contradições que definem cada um dos protagonistas.

Há poucos meses, quando O Processo Goldman chegou às salas francesas, a escritora e jornalista Annette Lévy Willard escreveu um belo texto sobre Pierre Goldman, evocando a sua militância política e também os ecos do seu assassinato (no site da revista La Règle du Jeu, 25 set. 2023). Tendo trabalhado com ele no Libération, recorda-o como alguém que “apesar das suas facetas muito obscuras e das suas perigosas derivas”, marcou a sua geração. E conclui dizendo que, para essa geração, ele foi “um idealista revoltado que não compreendeu que a guerra tinha acabado — e que Hitler a tinha perdido.”

 
 

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