Memórias da cultura afro-americana renascem através do cinema
Podemos pressentir a energia de Summer of Soul através dos nomes dos artistas que vão surgindo nos vários concertos que o filme dá a ver: Stevie Wonder, B. B. King, Sly and the Family Stone... Foi em 1969, na época do festival de Woodstock, com os seus lendários "três dias de paz e música" (sem esquecer que a banda dos irmãos Sly e Freddie Stone também esteve em Woodstock).
De facto, não é possível contar a história de Summer of Soul sem evocar Woodstock e, em particular, o documentário Woodstock, de Michael Wadleigh, lançado nas salas dos EUA em 1970, nesse mesmo ano apresentado, extra-competição, no Festival de Cannes. Até porque, de uma maneira ou outra, deparamos com uma expressão consagrada pela mitologia musical da década de 60: os concertos registados em Summer of Soul são frequentemente citados como o "Woodstock negro".
Enfim, a mitologia pode mobilizar os nossos corações, mas nem sempre tem em conta algumas evidências muito básicas. A começar pela objetividade do calendário. Assim, os concertos evocados em Summer of Soul começaram antes de Woodstock!... E acabaram depois... Com a designação global de Harlem Cultural Festival, o evento foi repartido por seis domingos do verão de 1969, de 29 de junho a 24 de agosto. E porque a história se faz também de maravilhosas coincidências, lembremos apenas que, no dia 17 de agosto, quando Joe Cocker, no palco de Woodstock, reinventava With a Little Help from My Friends, dos Beatles, em Nova Iorque, no Harlem, a cabeça de cartaz era Nina Simone.
Calcula-se que os seis concertos gratuitos tenham atraído perto de 300 mil pessoas. O simples enunciado dos nomes que passaram pelo palco do Harlem, no Mount Morris Park, é impressionante. Além dos já citados, lembremos a cantora Abbey Lincoln, com o baterista Max Roach, os grupos de R&B The 5th Dimension e Glays Night & The Pips, a cantora de gospel Mahalia Jackson e o ensemble familiar The Staple Singers (Mavis Staples continua ativa, tendo lançado um magnífico álbum, We Get By, em 2019).
Estamos perante uma proeza visceralmente cinematográfica. A saber: a reconquista de uma memória que, durante meio século, ficou arquivada. Assim mesmo: organizado e apresentado pelo cantor Tony Lawrence, o Harlem Cultural Festival foi filmado, com câmaras de video, por uma equipa chefiada pelo produtor Hal Tulchin; partes dessas filmagens foram vistas num canal televisivo novaiorquino, numa série de programas com uma hora de duração, nas noites de vários sábados de junho, julho e agosto de 1969. O certo é que, apesar de diversas tentativas de Tulchin no sentido de organizar e divulgar tão preciosa memória, as 40 horas registadas foram permanecendo inéditas.
Até que o produtor Robert Fyvolent adquiriu o material a Tulchin, montando todo um processo de recuperação e restauro que daria origem a este magnífico Summer of Soul. Tulchin está presente nas imagens, mas já não viu o trabalho concluído, tendo falecido em 2017, contava 90 anos. O filme marca a estreia na realização de Ahmir "Questlove" Thompson, o baterista da banda The Roots que podemos ver regularmente nas emissões de The Tonight Show, com Jimmy Fallon (SIC Radical). Consagrado em janeiro, no Festival de Sundance, com o Grande Prémio do Júri e o Prémio do Público, Summer of Love está disponível na plataforma Disney+; no dia 21 de agosto, será projetado na abertura da 18.ª edição do IndieLisboa, no cinema São Jorge.
O trabalho de Questlove é conduzido pelo rigor didáctico de quem sabe que tem entre mãos um testemunho espectacular sobre a música afro-americana e, nessa medida, uma expressão muito directa das convulsões dos anos 60, desde as lutas pelos direitos civis até à contestação da guerra do Vietname. Vivia-se não apenas um fundamental momento de afirmação política, mas também uma conjuntura de resgate e celebração da beleza de todo um património cultural - em recente entrevista à revista Time (28 junho), Questlove recordava que foi em 1969 que ganhou força simbólica a expressão "Black is beautiful".
As entrevistas com alguns dos protagonistas na actualidade são complementadas por diálogos com espectadores dos próprios concertos, num ziguezague que instala um fundamental efeito narrativo: longe de pretender ser um mero exercício nostálgico, Summer of Soul define-se como uma câmara de eco - musical & simbólica - cujos temas ressoam, dramaticamente, no presente dos EUA.
Sugestivo sintoma desse infinito trabalho de prospecção histórica está no parêntesis que Questlove acrescentou ao título do seu filme: (... Or, When the Revolution Could Not Be Televised), à letra, "Ou quando a revolução não pôde ser transmitida pela televisão", parafraseando o genial The Revolution Will Not Be Televised, tema do álbum de estreia de Gil Scott-Heron, A New Black Poet - Small Talk at 125th and Lenox (1970). Ou como a história é um infinito labor de escrita, reescrita, conhecimento e pensamento.
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