Mel Brooks fotografado por Jay L. Clendenin
Mel Brooks fotografado por Jay L. ClendeninMel Brooks fotografado por Jay L. Clendenin

Mel Brooks. (mais) um Óscar para o Frankenstein da comédia americana

Passou os dias do confinamento pandémico a escrever um livro de memórias. Agora, aos 97 anos, Mel Brooks recebe o Óscar honorário. O homem por trás de The Producers e Balbúrdia no Oeste é um dos gloriosos representantes de uma Hollywood que não punha açaimes na comédia.
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É a meio do sétimo episódio da mais recente temporada de Homicídios ao Domicílio que vemos o seu rosto de dinossauro simpático no ecrã do telemóvel de Martin Short. Na cena em questão, a personagem tresloucada de Short, Oliver, um encenador da Broadway que está às voltas com um novo projeto, quer pedir aconselhamento especializado ao veterano Mel Brooks sobre um ator, Matthew Broderick, que este dirigiu no musical The Producers (2001). Respondendo à pergunta se teve problemas em trabalhar com o tipo, Brooks, do outro lado da videochamada, diz com apreensão de velho resignado: “Oh Meu Deus, não lhe deste a entender de alguma forma que estavas aberto às ideias dele, pois não? Oh Oliver, estás lixado!”


Não deve ter mais do que um minuto, mas este cameo fresquinho, que se encontra na série disponível no Disney+, funciona como um gracioso lembrete: se há alguém com experiência acumulada de produção, realização e representação, entre outras travessuras, é Mel Brooks. Uma lenda do politicamente incorreto, que marcou as décadas de 60 e 70 da indústria americana, e que no próximo dia 9 recebe um Óscar honorário, na companhia de outras duas homenageadas - a atriz Angela Bassett e a montadora Carol Littleton. A 14ª cerimónia do Governors Awards estava inicialmente agendada para novembro, mas por respeito à greve dos atores e argumentistas adiou-se para este começo de 2024. E note-se o dado curioso: com 97 anos, Brooks será a segunda personalidade mais velha a receber um Prémio da Academia, a seguir ao designer de produção Robert F. Boyle, que foi alvo da mesma distinção em 2008, aos 98 anos.

Carl Reiner e Brooks, a dupla de 2000 Year Old Man.


Por vezes, o Óscar honorário surge como uma estatueta de consolação para aqueles que, tendo sido nomeados ao longo do tempo, não conseguiram bater a concorrência em nenhuma das ocasiões (pode dizer-se que Angela Bassett tem aqui o seu momento, após a viral careta de desagrado na última cerimónia dos Óscares, quando Jamie Lee Curtis lhe “roubou” o prémio de Melhor Atriz Secundária). Não será, de todo, o caso de Brooks, que integra a lista dos EGOT - as raras figuras do mundo das artes que venceram um Emmy, um Grammy, um Óscar e um Tony. Isto sem incluir o Kennedy Center Honors, distinção que lhe atribuiu o Presidente Obama em 2009, depois de o comediante ter recusado a mesma honra vinda do anterior Presidente, George W. Bush, como forma de protesto contra a guerra no Iraque.


Por outras palavras: Brooks não se pode queixar. A não ser das saudades que tem do amor da sua vida, a maravilhosa atriz Anne Bancroft (1931-2005), e do melhor amigo, Carl Reiner (1922-2020), parceiro de piadas desaparecido durante a pandemia. Foi nessa altura que voltámos a ouvir falar do realizador de Spaceballs. Quase aos 95 anos, andava a fazer vídeos com o filho, Max Brooks, para alertar os idosos sobre a necessidade de se resguardarem da covid-19, enquanto deixava claro que Joe Biden era o seu candidato à presidência dos EUA. Por esses dias também, Brooks dedicou-se à escrita de uma autobiografia, com a destreza de alguém que começara muito novo a assinar sketches... O resultado, All About Me! (ainda não traduzido por cá, e lido na edição de bolso da Penguin Random House), é uma diversão pegada, com histórias para dar e vender que conduzem o leitor numa viagem pessoal e transmissível pelos meandros do show business.


Um judeu de Brooklyn
“Até aos cinco anos, não me lembro de os meus pés tocarem o chão”, escreve Mel Brooks nas primeiras páginas de All About Me!, relatando a infância em Brooklyn do menino de origem judaica chamado Melvin Kaminsky (“bom nome para um professor de literatura russa”, observa), que cresceu órfão de pai, desconhecendo o significado próprio de orfandade. Acontece que, com três irmãos mais velhos e uma mãe que fazia sanduíches de salmão e tomate para as longas manhãs de sábado passadas no cinema, o rapaz nem sentiu os tempos da Grande Depressão.


E aqui está outro aspeto invulgar de Brooks: a sua comédia não vem de uma infância torturada, como acontece com a maior parte dos humoristas (veja-se Chaplin). Mas ele reconhece que fazer rir os colegas da escola foi meio caminho andado para se proteger dos bullies, até porque era uma criança baixinha. Isso aliado a uma paixão pelo ritmo e pela Broadway, que lhe deu resistência mental para sobreviver aos anos do serviço militar, durante a Segunda Guerra Mundial. Daí para a televisão foi um saltinho.

Brooks e Anne Bancroft, casados de fresco.


Com efeito, o sucesso de Mel Brooks começou a ser cozinhado no meio televisivo, onde passou algum tempo a escrever sketches para Sid Caesar (1922-2014), um dos comediantes renomados da época. Nessas andanças conheceu Carl Reiner, com quem criou a performance conjunta 2000 Year Old Man, em que Brooks é a personagem titular, um homem com 2000 anos, entrevistada por Reiner. Gravaram cinco álbuns dessas conversas e fizeram várias aparições na TV.


Já tinha, portanto, a sua quota de fama quando, em 1961, pôs os olhos em Anne Bancroft, durante um ensaio no Ziegfeld Theatre. Assim que se fez silêncio na sala, gritou: “Anne Bancroft, I love you!” Ao que ela respondeu: “Quem raio és tu?” E ele, sempre em voz forte: “Sou o Mel Brooks, ninguém de quem possas ter ouvido falar.” Estava enganado. Ela não só conhecia a sua dupla com Reiner como era fã. E assim, a atriz que se tornou fantasia de muitos rapazinhos depois do filme de Mike Nichols, A Primeira Noite (1967), em que contracena com Dustin Hoffman, fez-se mulher de sonho, mas real, do comediante que tinha ainda muito a provar ao mundo.


The Producers e mais além
Esses Anos 60 foram a abrir: Brooks escreveu o argumento de uma curta-metragem de animação, The Critic (1963), que venceu o Óscar nessa categoria; coassinou com Buck Henry a popularíssima série Get Smart (1965-70), a aproveitar a moda de James Bond, com um agente secreto que usava o sapato como telefone; e a cereja em cima do bolo veio sob a forma de um filme que seria a sua primeira realização de cinema, e a prova de Brooks não estava nem aí para recuar diante das almas ofendidas. The Producers (1967), a história maluca de um produtor teatral e do seu sócio, que arranjam um esquema fraudulento para enriquecer à custa de um falhanço, deu muito que falar. A saber, o falhanço inventado dentro do filme chama-se Springtime for Hitler e é um musical a gozar com o Terceiro Reich... Claro que houve muita gente que não digeriu bem a provocação, ainda mais vinda de um realizador-comediante judeu! Mas The Producers tornou-se uma obra de culto, valendo logo ao seu autor maldito um Óscar de Melhor Argumento, para além de ter ganho mais tarde uma versão na Broadway (a tal de 2001, com Matthew Broderick) e um remake, em 2005.Assentada a poeira, os maiores sucessos de Brooks ainda estavam para chegar, e fazem agora 50 anos. São eles Balbúrdia no Oeste e Frankenstein Júnior, respetivamente, 2º e 3º lugares no Top dos filmes americanos mais rentáveis de 1974.


O primeiro, com o título original Blazing Saddles, surgiu como uma gigantesca sátira do género western, ostentando um xerife negro (que era para ser o amigo Richard Pryor) e uma das cenas mais anárquicas do cinema, em que as personagens do western invadem uma produção musical, no estúdio ao lado, gerando o caos absoluto. Já o segundo, mais moderado, mas também mais dramaturgicamente rico, é uma homenagem doce e cómica ao Frankenstein de James Whale, num preto-e-branco que se acerca da atmosfera sombria desse clássico de 1931 com Boris Karloff, ao mesmo tempo que explora a carga demente do cientista interpretado por Gene Wilder, ator que colaborara com Brooks nos filmes anteriores e que já fazia parte da memória coletiva pelo seu papel de Willy Wonka. Sobre este Young Frankenstein, escreveu Brooks em All About Me! que foi o filme em que procurou a máxima “satisfação emocional” e o mais “profundo afeto pelas personagens”. É talvez o seu magnum opus.


O tom paródico prosseguiu com títulos como Alta Ansiedade (1977), uma brincadeira em torno do “género hitchcockiano”, e, entre outros, A Mais Louca Odisseia no Espaço (Spaceballs, 1987), hilariante abordagem dos filmes de ficção científica, em particular do fenómeno Star Wars, com Brooks a interpretar uma versão memorável do sábio Yoda, chamado... Yogurt.


Brooksfilms
O que poucos sabem, ou se recordam, é que foi também ele o produtor de grandes e/ou estimadas obras como O Homem Elefante (1980), de um jovem e desconhecido David Lynch, A Mosca (1986), de David Cronenberg, e A Rua do Adeus (1987), de David Hugh Jones, este último uma verdadeira prenda para a adorada esposa, que o protagonizou com Anthony Hopkins. A parte mais engraçada disto tudo é que, para não influenciar a perspetiva do público sobre esses filmes que não tinham quase nada que ver com as suas criações levadas da breca, o comediante mandava ocultar o seu nome dos créditos...


De entre as mil anedotas verídicas que Mel Brooks conta na autobiografia, há pequenas ternuras sobre personalidades da comédia, como Peter Sellers e um miúdo inteligente chamado Woody Allen, que estava a dar os primeiros passos no show business, encontros de trabalho peculiares, como aqueles que teve como Jerry Lewis e Orson Welles, em momentos diferentes da carreira, e autênticas memórias de ouro com Cary Grant - estrela que lhe confessou as suas dificuldades com o sistema de estúdios - e Alfred Hitchcock, com quem partilhou várias refeições, elogios e piadas. “Acho que ele apreciava o meu humor basicamente bruto de Brooklyn. Gostava da justaposição disso com o seu respeitável contexto inglês”, diz Brooks a páginas tantas. Um dia chegou ao escritório e tinha uma garrafa de Château Haut-Brion à sua espera, com um bilhete (sobre o filme Alta Ansiedade): “Meu caro Mel, que esplêndido entretenimento! Daqueles que não lhe deve causar qualquer tipo de ansiedade. Com os melhores cumprimentos, Hitch.”

All About Me!
Mel Brooks
Edição Penguin Random House
480 páginas


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