Matthew Perry morreu a 28 de outubro de 2023.
Matthew Perry morreu a 28 de outubro de 2023.Chris Delmas / AFP

Matthew Perry e a coisa terrível de que 'Friends' não o salvou

A autobiografia do falecido ator chegou há um mês às livrarias e tem estado nos lugares cimeiros dos tops de vendas. Não admira: 'Friends, Amantes e Aquela Coisa Terrível' é a confissão por que os fãs de Chandler Bing ansiavam, com uma nudez de alma nada menos que impressionante.
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Não é preciso avançar muitas páginas para se sentir a vertigem. Na verdade, basta contar três linhas para se perceber ao que vamos. “Se quiserem, podem considerar o que vão ler como uma mensagem do além, o meu além” (quarta linha, antes do relato de uma experiência de quase morte; pausa para respirar). Estas são as palavras que Matthew Perry escolheu para dar as boas-vindas ao leitor de Friends, Amantes e Aquela Coisa Terrível, agora editado em Portugal (Casa das Letras, tradução de Renato Carreira). Um livro de memórias que teve o seu lançamento original em 2022 - um ano antes da notícia chocante, mas não totalmente inesperada, da sua morte, a 28 de outubro último -, trazendo ao conhecimento público uma batalha que vinha sendo travada no sigilo possível, entre muitas idas a hospitais e internamentos em unidades de reabilitação. A batalha contra o alcoolismo e a dependência de opiáceos. “Para me manter vivo, tinha-me transformado num doente profissional”, conta.

Friends, Amantes e Aquela Coisa Terrível está repleto de frases assim, diretas, absolutamente avessas a qualquer dourar da pílula e empenhadas em manter o humor à tona, para afastar a depressão das imagens evocadas. Na realidade, outro tom não seria de esperar do ator que deu vida a Chandler Bing  na série de sucesso internacional Friends (1994-2004), o tipo da masculinidade anedótica, vulnerável, com charme sarcástico a rodos. Uma personagem, como diz a certa altura, que nasceu no papel para ser levada ao ecrã por ele e mais ninguém (ainda antes de lhe ser atribuída).

Friends, Amantes e Aquela Coisa Terrível

Matthew Perry
Casa das Letras
296 páginas

“Quando li o guião de Friends Like Us [título de trabalho da série], foi como se alguém me tivesse seguido durante um ano, roubando as minhas piadas, copiando os meus maneirismos, foto- copiando a minha visão da vida, cansada e espirituosa. Uma personagem em particular destacou-se para mim: não é que eu pensasse que podia fazer de ‘Chandler’, eu era o Chandler.”

Assumindo então o perfil que, para todos os efeitos, é o dele (“o meu estilo, o meu Chandler”) Perry conduz-nos pela infância, adolescência, vida adulta e meia-idade daquele que nunca sentiu propriamente o quentinho do colo familiar: desde muito cedo, deram-lhe barbitúricos para acalmar o choro, tornou-se a “criança desacompanhada” em voos entre o Canadá e Los Angeles, devido à separação dos pais, iniciou-se no álcool aos 14 anos e, antes disso, aprendeu a refugiar-se em métodos para fazer as pessoas rir, apurando a receita até ser capaz de ir além da sombra do miúdo ávido por atenção.

É uma junção de pontos que vão dando consistência óbvia à solidão do homem que escreve as memórias aos 52 anos, numa casa com vista para o Oceano Pacífico, porque precisa de sentir a segurança de “um lugar onde existe amor. Lá em baixo, algures naquele vale, ou naquele vasto oceano”, esclarece, “é lá que está a paternidade. É lá que está o lar”.

Lamechas? Não propriamente. Assim que as histórias da sua mudança para Los Angeles e a malfadada busca pela fama começam a encadear-se no livro, há uma luz que vinga, e algumas aventuras hollywoodescas que merecem ser lidas nas palavras do próprio - como um encontro com M. Night Shyamalan num bar ou o namoro com Julia Roberts -, mesmo quando a combinação de humor e algum excesso de franqueza pode não cair bem nos tempos que correm, em virtude das múltiplas sensibilidades. Afinal, ele assume-se como o ator que dormiu com meio mundo (as “amantes” do título) e acabou (acabou mesmo, mal sabia...) sem um único compromisso sério, além do seu trabalho em Friends.

De resto, aí estava visível o seu monstro secreto, ainda que nunca tenha ido para o estúdio sob o efeito de substâncias: “É possível acompanhar a trajetória da minha dependência se medirmos o meu peso de temporada em temporada. Quando tenho peso a mais, é álcool. Quando estou magro, são comprimidos. Quando tenho uma barbicha, são muitos comprimidos.”

Ao longo dos capítulos, com interlúdios, Matthew Perry está sempre a regressar à “Coisa Terrível” - até porque ela esteve sempre presente. Algures a misturar-se com os milhões, ganhos em episódios e gastos em reabilitação; ou a crescer dentro dele, em silêncio, ainda na época da sua memória preferida de infância (ver Annie Hall com a mãe); ou a alojar-se na magia de ter conhecido e contracenado com River Phoenix (As Noites Loucas de Jimmy Reardon, 1988); ou nos bons momentos passados com Bruce Willis (Falsas Aparências, 2000 e 2004); ou no melhor projeto de uma carreira, que conquistou o Globo (esse, claro); e, antes de tudo, na visão da fama como preenchimento de um vazio.

Ser famoso correspondia, na perspetiva cega do jovem Perry, à ausência total de problemas, ao passe de mágica que tudo resolve e torna a existência uma eternidade doce e imune aos males da vida: “Em 1986, tinha a certeza de que a fama iria mudar tudo e ansiava por ela mais do que qualquer outra pessoa à face do planeta. Precisava dela. Era a única coisa que me iria curar. Tinha a certeza disso. Vivendo em Los Angeles, de vez em quando encontrávamos uma celebridade ou víamos o Billy Crystal no Improv, reparávamos no Nicolas Cage na cabina ao lado e eu sabia que eles não tinham problemas. Na verdade, todos os seus problemas tinham sido eliminados. Eram famosos.”

Não era assim, e nunca foi assim. Chandler/Matthew teve tudo o que a fama e o dinheiro podem dar. Mas nem o carinho de Friends, nem o facto de poder comprar casas com vista, ao ritmo que lhe apetecesse, o livraram da Coisa Terrível. E ele é brutalmente honesto sobre isso. Em termos literais: eis uma confissão que vem das entranhas.

A onda dos livros de memórias de celebridades

Nos últimos dois, três anos, têm surgido no mercado português, com uma regularidade assinalável, edições portuguesas de biografias e/ou livros de memórias de gente famosa, que contemplam percursos mais ou menos longos, alguns com ângulos bastante específicos.

Ainda no mês passado foi anunciada a de Al Pacino, com o título Sonny Boy, a ser lançada em outubro (ed. Penguin Random House), e é daquelas que provavelmente não demorará muito a ter tradução portuguesa. Para já, eis algumas leituras biográficas recentes que se encontram nas nossas livrarias, ou estão prestes a ser lançadas.

FAZ-TE ÚTIL: 7 REGRAS PARA A VIDA 
Arnold Schwarzenegger 
Edição Lua de Papel 
224 páginas 

Depois dos vídeos caseiros durante a pandemia, Arnold Schwarzenegger decidiu que estava na altura de transmitir alguns conselhos por escrito. O título Faz-te Útil  é uma expressão do pai que o acompanha desde sempre, ajudando-o a ultrapassar as fases difíceis da vida (desde a infância pobre, em plena Segunda Guerra Mundial, na Áustria) e a resolver os problemas do dia a dia. O livro contém, portanto, as suas regras para uma espécie de “fazer acontecer”, em termos de ambição pessoal. Relatos divertidos que põem o bodybuilder, estrela de cinema e ex-governador da Califórnia a refletir sobre a sua experiência e os benefícios de pensar em grande, apostando no trabalho árduo. 

TAYLOR SWIFT: A HISTÓRIA COMPLETA
Chas Newkey-Burden 
Edição Contraponto 
304 páginas 

Taylor Swift é o verdadeiro fenómeno de 2023, corroborado por prémios, recordes de vendas de álbuns, a eleição de “Personalidade do Ano” pela revista Time  e o filme-concerto The Eras Tour, registo cinematográfico da histórica digressão da cantora, cujos concertos em Portugal, já esgotados, acontecem nos próximos dias 24 e 25 de maio. Era apenas natural que nesta altura surgisse mais qualquer coisa a cimentar a celebridade da jovem e poderosíssima artista norte-americana - vem na forma de uma biografia que fala da sua evolução no mundo da música, e enquanto mulher de negócios, desde os tempos na Pensilvânia ao estrelato radioso. O livro encontra-se em pré-venda e é lançado a 4 de julho.

PAGEBOY
Elliot Page 
Edição Vogais 
288 páginas 

Conhecemo-lo primeiro como Ellen Page, a atriz de Juno (2007), que nesse filme de Jason Reitman já nos fazia testemunhar um certo desconforto físico, tratando-se, para mais, de uma comédia dramática sobre uma gravidez indesejada. Vimo-lo, de filme para filme, a prosseguir com esse desconforto no grande ecrã, até se assumir, finalmente, como pessoa trans, que passou a responder pelo nome Elliot Page. O livro Pageboy é então a história de quem reprimiu, por demasiado tempo, a sua identidade, os seus desejos inconformados com o corpo, até conseguir libertar-se das expectativas dos outros e dar a volta ao seu pesadelo em Hollywood.

LUZ VERDE 
Matthew McConaughey 
Edição Lua de Papel 
336 páginas 

Notas diarísticas escritas ao longo de 35 anos estão na base deste Luz Verde, livro de memórias do ator oscarizado, que tenta transmitir algumas das lições aprendidas por entre os seus “sucessos e fracassos, alegrias e tristezas”, como se lê na contracapa. Matthew McConaughey, com meio século de vida, explora o princípio da maturidade em ensinamentos pessoais que vão do sentido de justiça ao controlo do stresse, da diversão ao propósito de ser melhor pessoa. Em certa medida, é uma conversa consigo mesmo, apresentada como um elogio à vida, enquanto estrada com sinalética reconhecível: importa apanhar os sinais verdes.

WILL 
Will Smith e Mark Manson 
Edição Albatroz 
452 páginas 

Publicado antes do infeliz episódio da chapada nos Óscares de 2022, este relato da vida de Will Smith, escrito a quatro mãos (Mark Manson é o autor do sucesso de autoajuda A arte subtil de saber dizer que se f*da), faz o que todas a biografias fazem, procurando, a par com a trajetória do ator no cinema e na música, uma linha de introspeção que versa sobre uma tomada de consciência e a chegada a um ponto de bem-estar interior. O que lido hoje, convenhamos, não deixa de conter uma enorme ironia: “Will é a história de alguém que soube dominar as suas próprias emoções, escrita de forma a ajudar outros a fazerem o mesmo”. Então e o que foi aquilo?

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