Jennifer Connelly vai bem com a sci-fi.
Jennifer Connelly vai bem com a sci-fi.

Matéria Escura: ficção científica fora da caixa

Nova série da Apple TV+, 'Matéria Escura' renova o interesse nos termos “complicados” da mecânica quântica através de interrogações muito humanas. Protagonizada por Joel Edgerton e Jennifer Connelly, eis uma boa viagem entre universos paralelos.
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Como estamos de paciência para o conceito de multiverso? Depois de a Marvel ter usado e abusado da ideia, e de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo se ter servido dela e vencido os Óscares, persistindo a moda noutras ficções mais discretas - desde o filme A Teoria Universal, de Timm Kröger, estreado há pouco nos cinemas, até à série Corpos, disponível na Netflix -, dir-se-ia que já chegamos à fase de queimar os últimos cartuchos de uma palavra gasta. Ou então não: a série Matéria Escura (Dark Matter), em estreia na Apple TV+, criada pelo autor americano do romance homónimo, Blake Crouch, está aí para tentar provar que é possível uma abordagem adulta do multiverso, dispensando pessoas a voar ou portais místicos. De resto, e para que conste, o livro de Crouch foi lançado em 2016, precisamente o ano em que os super-heróis adotaram o conceito no grande ecrã... Talvez seja caso para lhe dar alguma autoridade na matéria. 

Surgindo numa altura em que as séries de ficção científica têm dificuldade em encontrar uma janela mediática (à exceção de The Last of Us), com o panorama dominado pelos biopics, dramas de prestígio e comédias, Matéria Escura assume-se como um objeto de curiosa seriedade, desde logo com um intérprete de grande valor, que ao longo dos anos não tem sido devidamente reconhecido: Joel Edgerton. Aqui, ele é Jason Dessen, um professor de Física que, na tranquilidade dos seus dias, não deixa de se perguntar o que seria a sua vida se tivesse apostado deveras na carreira profissional, em vez de constituir família. Uma interrogação que se torna particularmente incómoda no dia em que recebe a notícia de um amigo e ex-colega de faculdade que venceu um prémio importante na área em que ele próprio gostava de ter vingado. Seja como for, não é mais do que um pensamento passageiro - ao lado da mulher, Daniela (Jennifer Connelly), e do filho adolescente, Charlie (Oakes Fegley), ele tem tudo o que poderia desejar. 

É assim que o encontramos no primeiro de nove episódios, antes de ser raptado por um homem de máscara que, ao injetar-lhe uma droga, coloca a questão-chave: “Estás feliz com a tua vida?”. A partir daí (é impossível conter o spoiler), Dark Matter andará à volta destas duas personagens, ou destes dois Joel Edgertons, em diferentes planos de realidade. A saber, Jason acorda num lugar onde é visto como um cientista de renome, que fez uma descoberta genial, enquanto pela porta da sua casa em Chicago entra outro Jason, a fazer-se passar pelo próprio. Trocado em miúdos: o Jason 2 é o cientista famoso, uma versão de Jason que evoluiu profissionalmente e inventou The Box, uma caixa que permite viajar entre universos sobrepostos, conseguindo aceder ao universo do Jason original e tomar o seu lugar, com a única intenção de experimentar a vida em família, de que se privou ao dar prioridade à carreira. 

Joel Edgerton volta a mostrar o que vale.

A ciência das personagens

Neste ponto, Matéria Escura já disse ao que vem. Trata-se de colocar grandes escolhas em perspetiva, explorar as dúvidas comuns dos seres humanos pela via da aventura científica. E a série de Blake Crouch tem suficiente maturidade nessa atitude de entrar pelo conceito do multiverso apenas na medida em que ele dinamiza uma história de regresso a casa (o objetivo do protagonista). Como sublinhou o escritor e criador em entrevista à Time, “a ciência está lá para quem a quiser”. Não é um obstáculo de compreensão, nem faz pose de “ideia brilhante mas demasiado rebuscada”. Pelo contrário, a lógica por trás de Matéria Escura está toda no sítio. 
Ao separar Edgerton/Jason em duas versões, maravilhosamente sustentadas por um ator capaz dos mais subtis contrastes de personalidade, a série também procura o equilíbrio entre dois tons: o thriller doméstico, por um lado, que acentua a sensação de um “dormindo com o inimigo”, quando Connelly/Daniela começa a ler os sinais de uma presença impostora em sua casa; e a ficção científica mais franca, por outro, centrando-se no enigma de Jason dentro da caixa, a percorrer um corredor infinito e a abrir portas que dão acesso a múltiplos universos, numa sucessão de tentativas para voltar à sua Chicago, tal e qual como a deixou. Não estará sozinho nessas viagens - acompanha-o uma psicóloga, interpretada pela brasileira Alice Braga, que seria o interesse amoroso do Jason cientista, e também perdeu as coordenadas da sua existência... 
Nesta configuração de uma série com um argumento sólido e um elenco seguro, onde as personagens secundárias oferecem espessura extra (embora algumas estejam necessariamente subdesenvolvidas), o calcanhar de Aquiles é o número de episódios. Sente-se que a meio de Matéria Escura há um reiterar de ideias desnecessário, uma vontade de mostrar todas as hipóteses de The Box, na riqueza do conceito, ignorando-se a noção de ritmo - seis ou sete episódios fariam perfeita justiça à história, sem ser preciso ilustrar aquilo que o espectador já percebeu. 

Dito isto, a dupla final de episódios surpreende e anima os acontecimentos, chegando mesmo a criar um novo tom. Até porque aí já não é tanto a ficção científica que interessa, mas o destino daquela família, as personagens que cresceram e às quais nos ligamos. Na referida entrevista à Time, Crouch realça a importância desse vínculo: “Tentámos vacinar-nos contra a mania da ficção de realidade alternativa, assumindo o propósito de criar ótimas personagens, com as quais as pessoas se importem e queiram seguir.” Isso cumpre-se, de facto. E para começar a segui-las é apanhar os dois primeiros episódios já disponíveis. 

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