Mark Rylance. Bom velho canibal
Quando se vê no grande ecrã com uma personagem com este poder e impacto fica surpreendido com alguma questão do seu foro mais íntimo? Será que se dá conta de como pode ser realmente assustador e ser realmente diferente daquilo que é?
Nunca penso nesses termos, quer dizer, que eu saiba...Mas na cena da caravana, quando a minha personagem se zanga, percebi que posso ser muito assustador. Qualquer um de nós, quando perde a cabeça, não tem um espelho ao lado para se analisar...Enfim, quando fico raivoso fico mesmo assustador - tenho de ter cuidado. Também por ser um ator de teatro a minha voz tem a tendência a ser muito alta e focada, além de que no teatro mais clássico acabamos por ter muitos papéis de gente zangada...Isso dá-te uma bagagem emocional e psicológica grande para te exprimires. Quando fui diretor de um teatro pediam-me para nas reuniões tentar controlar o nível da minha voz, sobretudo quando as reuniões eram a seguir a ter ensaiado o Hamlet e tentarem cortar o meu orçamento. Cada vez mais, estou confortável ao ver-me no grande ecrã.
Porque cada vez mais vê o processo?
Às vezes, nesses casos é quando vejo os defeitos, mas noutras fico agradado: tinha-me esquecido de ter feito determinadas coisas. Um ator decora a cena, interpreta-a e depois faz um filme na sua cabeça. Depois, na montagem sai algo que muitas vezes é diferente. Em Ossos e Tudo quase tudo deixou-me surpreso. Gosto muito da cena da cozinha, da brutalidade do ato de cozinhar numa cozinha, como se aquelas galinhas fossem o corpo de uma pessoa. Abarca uma ressonância única e traz uma nova palete de cores.
Depois da aclamação de Intimidade, de Patrice Chéreau, o Mark não quis seguir o cinema. Parece que nos foi tirado pelo teatro...
Senti que não estive bem nesse filme. Aliás, não o consegui ver, creio que não fiz um bom trabalho. Contrariamente ao resto do mundo, Intimidade em Inglaterra teve um acolhimento diferente.
Devido ao conteúdo do sexo explícito?
Sim, eram cenas muito, muito difíceis. Era um desafio muito importante para mim, coisa muito solitária. Foram precisos muitos meses para superar aquela rodagem. Deixei depois o cinema porque o teatro ocupou-me por completo. Agora estou de volta aos filmes e que sortudo sou!
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