Basil da Cunha e Eliana Rosa. Ou quando se descobre amor numa câmara de cinema.
Basil da Cunha e Eliana Rosa. Ou quando se descobre amor numa câmara de cinema.PAULO SPRANGER/Global Imagens

Manga d'Terra – A malta do bairro

Uma explosão de funk, rock e mornas. Uma explosão com amor e generosidade. Uma outra Reboleira sob o ponto de vista feminino e musical – é a novidade de 'Manga d'Terra', de Basil da Cunha, uma das muitas estreias portuguesas nesta semana. O realizador levou o DN ao coração do bairro.
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É uma das coqueluches do novo cinema português. Basil da Cunha, um luso-suíço que se apaixonou por um bairro e as suas gentes. A Reboleira ganhou um fiel retratista. Com a chegada de Manga d'Terra esta semana às salas, este é a terceira longa que filma no bairro que adoptou, uma Reboleira “City” que está a ser chocantemente destruída e transformada em gueto.

O seu cinema é uma prova da resistência daqueles que ali ficam e tentam sobreviver. A “malta do bairro” que o acolheu é sempre o seu tema. Atores e habitantes que se fundem em ficção que muda de género, do drama social ao filme de gangsters, mesmo quando às vezes se sente também comédia. Agora, em Manga d'Terra encontra a possibilidade do musical. Trata-se de uma vontade também de continuar essa escavação de memória coletiva, aqui a servir como fundo de uma história de uma mãe solteira vinda de Cabo Verde para trabalhar em Portugal e juntar dinheiro para os seus jovens filhos.

Começa por trabalhar num restaurante mas cedo percebe que a vida é dura. Tudo é duro, em especial o clima pesado das ruas, onde a pobreza não se esconde e a polícia frequentemente faz raids agressivos. Depois de uma altercação com a patroa, vê-se sem teto, mas a solidariedade desta comunidade é grande. E é a cantar que esta mulher encontra o seu espanta-espíritos, provavelmente, a sua salvação...

Basil e Eliane, um casal nas ruelas da Reboleira

Basil da Cunha leva-nos pelas ruas que conhece como ninguém. Apresenta-nos ao bairro, mostra-nos os cantos e becos que conhece já há 15 anos, sempre sem deixar para trás Eliana Rosa, a musa do filme, a musa da sua vida. Os dois caminham pelas estreitas do bairro e parecem heróis – todos os cumprimentam, todos os felicitam. É uma comunidade que está em pulgas para ver este musical sem filtros: toda a música foi filmada ao vivo, sem truques de estúdio.

No último Indielisboa, o filme esteve a concurso e Eliana Rosa deu um concerto no B.Leza, em Lisboa, após a sessão oficial. Timing perfeito também para servir de promoção ao seu último registo, Morabeza em Pessoa, lançado digitalmente por estes dias. Se o filme a transforma numa Rosinha tão mártir como diva, nos becos da Reboleira, Eliana é uma espécie de raio de luz, com o sol a bater reflexo torrencial na sua cabeleira loura.

Pelo caminho, vão cumprimentando os vizinhos, quase todos participantes nos filmes de Basil. “Aquele ali todo sorridente fez de vilão em O Fim do Mundo”, aponta. E o que se sente, na realidade, é uma comunhão com estas ruas, com esta gente. Eliana e Basil são heróis mas não se comportam como heróis e trocam abraços não encenados. Basil quer saber como os amigos estão, se está tudo bem. Como no seu cinema, o que conta são as pessoas e nesta visita guiada não se sente perigo mesmo quando se percebe que há tráfico de droga. “Aqui não há assaltos”, alguém diz. O smartphone do jornalista fica caído num rua e um rapaz de origem africana, dez minutos depois , está a devolvê-lo. “Estás em casa!”, ouve-se. O estigma de sanzala ou bairro de barracas intransponível existe mas devia ser desfeito. Este pedaço de muitas Àfricas tem gente boa, gente em quem Basil sente uma necessidade de contar as suas histórias e de mostrar este mundo fechado à saída de Lisboa, a mesma Lisboa que a 15 minutos de comboio tem tuk-tuks e engarrafamentos de turistas.

Paragem no café

Uma paragem num café . O espaço social documenta a memória de um bairro com mistura.
PAULO SPRANGER/Global Imagens

Paramos no Farol Café e parece que estamos no meio de uma história de Manga D'Terra. Nuno, o dono, tem orgulho na decoração benfiquista. Ao lado estão a Lucinda e o Patão, casal no filme, casal verdadeiro aqui à nossa frente. Mas será que no filme estão a ser eles próprios? O método de Basil é mais complexo: “no cinema eles resolvem certas coisas entre eles com os diálogos que se improvisam”. Esta é a beleza do cinema que parte do real...

Antes de entrarmos na “estrada militar” do bairro que vemos no filme, Tuna, que também conhecemos do filme, brinca com Basil e a dada altura, solta uma máxima: “até me salta a rasta!”. Percebe-se o fascínio de Basil por estas personagens maiores do que a vida, maiores do que o cinema.

O cinema a nascer das ruínas

Manga d'Terra – o cinema do real a ficar terno...

Entre vegetação e ruínas, entramos numa casa a cair aos bocados e vemos a paisagem da Amadora lá ao longe. Pergunto pelo estúdio de hip-hop que está no filme. “Já desapareceu”, avisa Basil. É preciso não esquecer que está tudo a desaparecer, mas dos décors do filme vemos como uma garagem foi transformada em restaurante falso. E reconhecem-se também alguns carreirinhos que faziam parte dos caminhos de 2720, a curta de Basil que recentemente esteve na estrada e mostrava também mais desse bairro.

E será que as imagens de repressão policial no filme acontecem muitas vezes? “Sim, é um terror. As investidas policiais são muito violentas. Creio que é mesmo terrorismo oficial”, alerta o realizador. Seguramente, a música que nasce deste filme soa como um bálsamo, um grito de dignidade de quem vive num canto de Portugal e reclama pela sua cultura e identidade. A voz linda de Eliana Rosa é um bálsamo anti-ódio.

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