Estamos num outono que é, afinal, verão. Bate o sol forte nas águas do Douro numa das suas curvas mais deslumbrantes na varanda mais fotogénica da Quinta de La Rosa, Pinhão, casa de vinhos, boa comida e ainda melhor cama. Está um silêncio e uma tranquilidade que parece anúncio ao paraíso na terra mas está uma equipa a filmar uma longa-metragem que é uma forte coprodução luso-espanhola. Não é nesta visita em exclusivo ao plateau de Sobre Todo de Noche, do basco Victor Iriarte, que vamos saber os segredos deste drama no feminino mas fica-se com a certeza que há uma serenidade na equipa que nem perturba o mais desperto dos hóspedes desta bela quinta..Lola Dueñas e Ana Torrent são as protagonistas e ambas estão em dia sim - garantem-me que o estado de graça das atrizes é algo contínuo, mesmo quando é dia de uma cena de intimidade emocional que será fulcral para a trama do filme. "Bem-vindo! Não digas a ninguém que estou assim! Estava com medo de não ter ficado bem mas agora sinto-me outra! Esta rodagem está a correr maravilhosamente bem!!. Já vou falar contigo...", diz a sorrir e eufórica Lola Dueñas que depois acaba por não cumprir a promessa devido à intensidade das cenas que iria rodar. Conhecida de ser recorrente dos melhores filmes de Pedro Almodóvar e, curiosamente, dona de uma casa na Ericeira, a atriz não quer que se saiba o que acontece ao visual da personagem e em respeito à lei dos "spoilers" não será por aqui que se contará a nova cor do cabelo de Vera, a personagem, uma mulher de cinquenta anos que se encontra com a mulher que ficou com o filho que não quis criar. Duas mulheres que na margem do Douro fazem uma re-escritura das suas vidas perante um filho a tornar-se homem. Pelo meio, haverá três mortes e uma intriga que dará ao filme uma palete de cinema negro..Citaçãocitacao"Nem sei se vou voltar a querer filmar, mas este era o filme que sempre quis fazer", Victor Iriarte, realizardo de Sobre Todo de Noche."As cenas em Portugal estão a correr muito bem. A presença do Douro português está muito marcada no guião e era muito importante termos esta luz. Este sol é perfeito para a narração e para um filme onde a luz é tão vital. Já tinha visitado esta região em férias e era isto que queria" , conta Victor Iriarte, alguém que se estreia no cinema depois de uma vida inteira a programar festivais, nomeadamente o maior de Espanha, San Sebastián. "Nem sei se vou voltar a querer filmar, mas este era o filme que sempre quis fazer"..A tranquilidade da equipa maioritariamente espanhola também se estende à parte portuguesa, sobretudo no campo da caracterização e da produção no terreno. Fica-se até na dúvida se é para confundir tranquilidade com cansaço. Quando apanhamos esta rodagem faltam apenas mais 4 dias para o fim destas intensas 5 semanas cujo início foi em Madrid com passagem depois por San Sebastián, precisamente durante alguns dias do festival. Pressente-se que da equipa da Ukbar, de Pandora da Cunha Telles, há uma unidade forte entre todos e também um sentimento de orgulho numa história que todos elogiam. Esta aposta na coprodução é uma insistência que nos últimos anos tem dado resultado. Não é brincadeira uma produtora portuguesa ter tanta cilindrada com o país vizinho: a Ukbar ajudou O Homem que Matou D.Quixote, de Terry Gilliam, a todos os títulos, um filme espanhol, e foi chamada pela Prime Vídeo para a primeira temporada de Maré Negra..Ana Torrent, que já foi musa de Victor Erice e colega de Joaquim de Almeida em Amor e Dedinhos de Pé, prepara-se sozinha para uma cena de confronto com Lola Dueñas. Esta rodagem em película é feita de forma cronológica com o guião e isso dá o impulso certo para o íntimo dos atores. Ana está numa cozinha desta quinta e ensaia com Lola uma cena onde duas mães de um só filho falam de um futuro imediato. É uma cena que pede à atriz uma emoção que vem das entranhas. "Este vai ser um filme intimista que tocará a todas as mães, mas também tem uma parte de thriller. É um guião muito bonito e rodar aqui e em San Sebastián é muito bom. Confesso que não conhecia esta região e é tão preciosa", conta-nos logo a seguir..Noutra cena está Ana e o filho adotivo, Egos, interpretado por Manuel Egozkue, que mesmo com uma infeção no ouvido é uma luz radiante de positividade no plateau. Um jovem de 20 anos que se estreia no cinema e que vem sobretudo da música - não por acaso: na cena que de manhã espreito através de um monitor é necessário um grande plano das suas mãos ao piano e não há duplo por ali... É outro dos que está feliz da vida ao olhar para os socalcos das vinhas: "creio que é mesmo muito boa ideia o cinema espanhol apostar nestas coproduções com Portugal, país tão familiar e amigo. Sentimo-nos muito cómodos com esta equipa de produção portuguesa, foi um processo muito natural e fácil. A Península Ibérica tem de ser mais partilhada!"..Na pausa do almoço, apesar do tal bem estar entre técnicos portugueses e espanhóis, a equipa portuguesa está numa mesa à parte e os elogios ao arroz de tomate do restaurante da quinta são levados a sério. Olga José, a make-up artist mais reputada do cinema português, está com a sua bebé num hotel perto e confessa que há diferenças de trabalho num filme espanhol mas está com uma boa fezada com o filme. Tamara Garcia, uma das produtoras espanholas, avisa-me que pode haver cansaço nesta fase mas salienta que o resultado vai ser muito positivo. Sobre Todo de Noche terá de estar pronto já em março e a ideia é estreá-lo num festival lista A em 2023..Sophia Bergqvist, a dona da Quinta de La Rosa, não se intromete muito nas filmagens. Esta dama inglesa confessa que resistiu à ideia do seu paraíso estar a ser invadido por atores e uma equipa de cinema, mas também é a primeira a admitir que a experiência a surpreendeu: "está a correr surpreendentemente sem problemas! Na altura hesitei muito mas depois lembrei-me de um filme que o meu pai me mostrou aqui feito nos anos 1920. Trata-se de um home-movie do meu avô antes de se casar e chamava-se Drama on the Douro e era uma história de suspense com a minha avó como protagonista. Infelizmente não sei onde estão essas imagens, julgo que foi a primeira vez que alguém filmou esta região. Enfim, o meu filho mais jovem agora diz que foi bom eu autorizar estas filmagens. Tudo na vida são experiências"..Sobre Todo de Noche decide-se neste momento na mesa das montagem mas pelo tom e ambiente das filmagens pode vir a ser um pequeno filme que poderá ter real eco em Espanha. Convém sempre lembrar que A Bela Época, de Fernando Trueba, em 1992, era uma coprodução ibérica e arrecadou o Óscar de melhor filme estrangeiro. Só para lembrar....dnot@dn.pt