Luísa Costa Gomes: “As coisas eram mais sofridas. Hoje não escrevo a dançar e a cantar, mas libertou-se o prazer”
Quem é que lhe encomendou o libreto de uma ópera sobre Luís de Camões para as comemorações do V Centenário ?
Tive uma primeira abordagem pelo Diogo Ramada Curto [comissário-geral adjunto da Comissão para as Comemorações do V Centenário de Luís de Camões], e depois um contacto telefónico com o Dr. José Cardoso Bernardes, o novo comissário. A única coisa que nós fizemos foi, de facto, projetar encontrar-nos. E falei com o Luís Tinoco também [o compositor]. Eu já tenho até uma ideia, mas nem sequer sei se o projeto vai para a frente.
A concretizar-se, a escrita e a composição avançarão em paralelo?
Não sei. É tudo muito precoce, mas o que ficou mais ou menos falado foi que - porque com alguns encenadores fiz isso - à medida que vou escrevendo o texto, vou enviando e vamos falando sobre isso. Porque eu gosto de ter o feedback da pessoa que está a trabalhar comigo, senão não vale a pena trabalhar em equipa. Mas o que ficou falado foi isso. À medida que for tendo ideias e esclarecendo o que quero e avançando no trabalho, posso eventualmente ir enviando para conversarmos.
Entusiasma-a este projeto?
Entusiasma num único sentido. Um único sentido. Não consigo ficar indiferente à comemoração dos 500 anos de um poeta extraordinário. Não me interessa a parte nacionalista e tudo aquilo que exploraram à volta. Era um poeta chamado Luís de Camões. E é com ele que eu tenho que lidar. Com mais nada. Quando o Diogo Ramada Curto me telefonou a primeira vez, eu desliguei o telefone e disse não vou conseguir escapar a isto. E tinha acabado o Sacadura [a biografia Sacadura Cabral, O aviador da Marinha, editada pela Dom Quixote em novembro de 2024] que foi mais uma empreitada de serviço público, vamos dizer assim. E isso não me apetecia absolutamente nada. Mas percebi, aliás, disse logo: não consigo escapar-me disto, porque não vou enjeitar esta responsabilidade - para mim não é sequer oportunidade - de homenagear este grande poeta.
E o primeiro impulso foi ir buscar um livro de Luís de Camões?
Não, o primeiro impulso foi desistir. O primeiro impulso foi dizer não. E depois o segundo impulso foi ir buscar as peças do Camões para as reler. São textos muito complicados que vão precisar de uma dramaturgia muito profunda, se forem usados. E depois percebi que há de facto zonas da obra do Camões que são muito menos estudadas. Por exemplo, as cartas. E isso interessou-me imenso. Mas ainda não sei porque, sendo, se for, qualquer coisa, será uma obra de câmara e, portanto, o texto não é uma peça de teatro. Não são duas horas de texto maravilhoso. É uma coisa, do ponto de vista do texto, razoavelmente truncada, ou seja, limitada no espetáculo.
Qual é o tempo que a pintura ocupa no seu dia-a-dia?
No meu dia-a-dia, depende. Se estou a escrever, estou a escrever. E se estou a pintar, estou a pintar. E se estou a pintar, posso estar a pintar das duas da tarde até às duas da manhã. Como já me aconteceu, agora durante o Natal. E depois sofrer as consequências - que não são muitas. Mas se a coisa está a correr bem, é intenso.
O que é que a leva a começar a pintar?
Não sei, é extraordinário. É uma coisa totalmente de impulso. Sou capaz de ter, como tenho lá agora, uma coisa para... preciso de fazer uma preparação, enfim, de pintura, de coisa antifúngica e tal. E está lá, já tenho o material todo pronto. E depois há um momento em que eu me levanto do sofá. E pronto. E aí já sei que só regresso bastante mais tarde.
É quando quer descansar da escrita?
Não é para descansar da escrita, não. Não se descansa, aliás, porque a pintura é absolutamente extenuante. Eu sou capaz de estar dez horas de pé curvada sobre um papel a fazer tracinhos. E completamente esquecida do resto.
E parte para a pintura sem ideias ou escolhe um tema?
É muito mais frustrante escolher um tema. Porque aquilo que aparece nunca tem rigorosamente nada a ver. Não sou das pessoas que fazem o desenhinho e depois vão colorir - que é completamente legítimo. Mas são coisas que acontecem. A pintura são coisas que acontecem às pessoas. E isso é maravilhoso. É como na literatura. Quando aparece uma frase que eu não estava de todo à espera, ou uma personagem que se apresenta com uma frase a que eu acho imensa graça - porque é preciso dizer, eu acho, de facto, graça, porque senão também não fazia. Se não me divertisse não fazia. Não valia a pena. Estava quieta. Ia passear. Mas sim, são coisas que demoram muito tempo a aparecer na pintura. Sou capaz de estar dias e dias e dias a tentar qualquer coisa. E às vezes aproximo-me e às vezes afasto-me. E de vez em quando há uma coisa que parece qualquer coisa que tem sentido.
Sente na pintura, como na escrita, a sensação de “elation “, de “onde é que isto veio”, de que falou numa entrevista?
Sim. Há sempre essa surpresa, não é? Esse aspeto surpreendente e de uma certa possessão. O momento em que a pessoa está possuída por qualquer coisa que não controla e que respeita e que venera. Isso é muito importante. Há pessoas que não respeitam o seu próprio dom. E eu respeito muito aquilo que me acontece. Mas elation é um sentido diferente, de empolgamento, é subir no ar, é o que quero dizer. Elation é estar noutra dimensão.
E a pintura consegue transportá-la para essa outra dimensão?
Parece uma coisa um bocadinho maluquinha, mas eu acho que toda a gente que teve essa experiência..., e era muito por isso que eu fazia, e durante muitos anos fiz, oficinas de escrita nas escolas. Porque uma e outra vez eu vi isso nos miúdos. Quando se tem a experiência de criar qualquer coisa, é altamente aditivo, é altamente viciante. Ou seja, a capacidade de se ligar com qualquer coisa que está cá dentro e que se desconheça, e que quando sai causa uma surpresa que nem sempre é agradável. Mas qualquer coisa como ‘eu não sou só isto’. Há qualquer coisa que eu posso explorar cá dentro. Que eu posso exprimir de outra maneira. E vi isso muitas vezes, o que para mim era extremamente comovente. Eu sempre lutei pela educação pela arte, pela possibilidade de, em vez de ensinarem aos miúdos a portarem-se bem, a estarem quietos e calados, a engolirem informação que podem ver online a qualquer momento e que não tem importância nenhuma, e que muda a cada dia... a arte poderia, com vantagem, fazê-los experimentar outras dimensões de si próprios. O que significa torná-los pessoas um pouco mais abertas.
Quando é que a pintura começou a tornar-se uma atividade mais regular e surgiu o desejo de a mostrar aos outros?
Tive três surtos, vamos dizer assim. Um primeiro surto, quando fui aos Açores. Quando voltei dos Açores, não conseguia parar de pintar aquele ultramarino, aquele mar, aquelas cores. Depois, entre 1998 e 2000, pintei bastante, a óleo. E isso depois desapareceu. Em 2019, em janeiro, sentei-me para pintar e já não me levantei mais.
Qual é a sua relação com a venda da obra?
É ambivalente. Lembro-me que vendi um quadro na primeira exposição, em 2021, e tenho imensas saudades desse quadro. E ainda por cima não sei quem é que o comprou. Se me estás a ouvir... (risos) Eu, aliás, digo que vendo os quadros, mas com direitos de visita (risos).
E esse quadro tem nome? Dá nome aos quadros?
Esse chamava-se The World of Girls. Eu achava-lhe imensa graça. O que é uma estupidez, é que se pus lá o quadro é para vender. Obviamente que é para vender, mas ao mesmo tempo custa-me. Não os ter, mas quero absolutamente partilhá-los. Eu sempre fiz coisas com um horizonte de profissionalização. E a venda é muito importante para me convencer a mim própria de que, de facto, não sou só eu que dou valor àquilo. Que há pessoas que conseguem dar também, que estão dispostas a adquirir as coisas para as terem em casa.
Identifica-se como artista plástica também?
Não, ainda não. Digo escritora, digo pintora, embora todas as coisas venham, acho eu, da mesma origem, da mesma fonte, e sejam manifestações diferentes da mesma energia.
Prevê que a pintura lhe venha a ocupar mais tempo?
Já sou muito velha, já percebi que as previsões não valem a pena, não sei. Gostaria muito também de ter tempo para escrever.
Compra arte, investe em arte?
Zero. Não compro nada. Eu não consigo ter coisas nas paredes, interfere com o trabalho, com o meu processo interno. Houve uma altura em que consegui, quando comecei desta última vez a pintar, consegui ter algumas coisas de amigos. Mas realmente não sou consumidora de arte.
Não tem quadros nas paredes em casa?
Não, por enquanto não.
Nem os seus?
Não.
A exposição é intitulada A Outra Coisa? Que outra coisa é?
A Outra Coisa pode ser lida muito facilmente como sendo a outra coisa da literatura. Portanto, da pintura. E depois, na folha de sala da exposição, eu falo no Ian Fairweather, que é um pintor que começou por ser inglês e depois acabou australiano. Acabou mesmo na selva australiana, a pintar completamente isolado. E ele dizia que a pintura é uma tensão entre a representação e a outra coisa. E essa outra coisa que a representação representa mantém sempre uma tensão, e há ali uma dificuldade enorme. E eu revejo-me nessa descrição da pintura. Há sempre uma representação, mas a maneira como essa representação é feita, é pintada, é que é a própria pintura. E a pintura é essa outra coisa. Quando se está a pintar, está-se a pintar. Não se está a fazer o retrato e a colorir. Não é uma coisa que já está pré-fabricada. Portanto, a maneira como o Monet, por exemplo, vê as maçãs, ou como faz retratos, é evidente que é uma investigação da sua própria mão e do seu próprio olho durante a vida toda. E é isso é que é a pintura. É deixar marca, deixar a sua maneira na tela.
Tem alguma pintura em processo neste momento?
Tenho, tenho. Agora queria começar outra coisa, que é telas maiores, que é um desafio terrível e do qual eu tenho pânico.
E já sabe o que é que vai sair dali?
Nada. Há um panorama, um horizonte que me interessa, que é tratar a natureza morta. Acho que a natureza morta faz todo o sentido, revisitar esse tema comum ocidental. Mas não significa que faça. Isto são coisas da minha cabeça, depois não sei o que é que aparece.
O que é que a atrai no tema da natureza morta?
Porque acho que é um género menor, por um lado.
Menor?
É um género menor, a natureza morta hoje, não é muito interessante.
Porque é que quis pegar num tema menor?
É uma especulação que eu tenho. Há na pintura um certo espontaneísmo, há um certo impressionismo ou expressionismo, a expressão da criatividade que faz com que haja uma indústria da pintura, enfim, podemos dizer kitsch, de mau gosto, desinteressante, mas que vai, de certa maneira, subvertendo os canons da pintura, que eu chamo de pintura de galeria e de galerista, portanto, da pintura, não sei, nobre, culta ou com muito mais referências à história da pintura contemporânea. E há cada vez mais uma contaminação dessas coisas todas.
O que significa que há muito mais pintura figurativa ou quase figurativa e em que há um peso grande de uma sensibilidade a que eu chamaria - porque não tenho melhor termo -, feminina. Ou seja, há um reaparecimento - eu estou a falar em relação aos anos 80, os negros anos 80 - um reaparecimento da cor, de uma certa alegria na forma. De facto, há um descomprometimento, um certo anti-intelectualismo.
E isso é tudo interessante e é tudo novo. Mas há muito, há muito disso. E, portanto, gasta-se muito facilmente.
E como em tudo, na literatura ou na arte, quando se está a fazer qualquer coisa, não se quer imitar nem repetir. É absolutamente fundamental que o artista não se proponha fazer à maneira de... E fazendo à maneira de, fazia-se sempre uma coisa nova. Portanto, pensar, repensar a natureza morta, que tem uma tradição ocidental, e não só. Interessa-me mais a tradição ocidental, muito multímoda, com muitas possibilidades, muitas potencialidades. Interessa-me estudar isso.
Em relação à escrita, o que é que tem em mãos?
Estou a escrever poemas. Estou a escrever trava-línguas e lengalengas e a ver se consigo reunir o suficiente para um novo livro. E tenho esse romance que está a meio. O famosíssimo romance de ficção científica, de que toda a gente me fala.
E tem título?
Não. Ainda tem um título completamente operatório que é Ela. No Cláudio e Constantino são aqueles dois irmãos e agora queria ancorar a narrativa numa personagem feminina.
E vai ter imagem também?
Sim, embora eu ainda não tenha percebido muito bem o modelo de colaboração com o Rafael Obergonze, que é um ilustrador e desenhador. Não é uma novela gráfica.
Porque quis ter ilustração neste livro?
Porquê? Não sei porquê. Tal como o Cláudio e o Constantino, tal como A Pirata, é um livro para todos. E o meu para todos inclui talvez imagens. Eu acho que teve a ver com o facto de eu ter visto uns desenhos do Rafael. Ele é geógrafo. E os desenhos que ele publicou no Facebook e que eu vi por acaso tinham umas topografias imaginárias que eu achei muito interessantes e que tinham a ver ou poderiam ter a ver com o território do romance. Com os territórios do romance. Embora haja, enfim, ali alguns elementos que não possam ser usados. Mas achei que podia ser uma ideia produtiva.
O que é que a idade traz ao artista? Acrescenta ou tira coisas?
Nem acrescenta nem tira. No meu caso - não sei o que é que pensam os outros artistas - a idade acrescentou infinitas coisas. Densidade, complexidade, experiência. A capacidade de estar nas tintas. Uma libertação de ideias preconcebidas, que pesavam sobre as coisas, que pesam sobre a vida, que pesam sobre a arte. Quando o joelho não dói ou a catarata não... enfim, quando a máquina está em sossego e não se faz sentir e não se arma em parva. Aquilo que nós nunca podemos, enquanto jovens ou enquanto adultos, perceber. Não conseguimos perceber, temos que viver isso. Só se percebe quando se chega cá. Quando se tem a sorte de chegar cá, mais ou menos com as partes intactas.
Continuar criativo é uma forma de permanecer jovem?
Não sei, eu a juventude, francamente, acho que é muitíssimo overrated. É muito sobrevalorizada. Acho, de facto. Há quem dizia ‘[a juventude] é um desperdício nos jovens’. E é verdade. Para mim. A pergunta era?
Se a criatividade permite manter contacto com uma parte de nós que não envelhece...
Eu acho que ela envelhece. E que é exatamente o envelhecimento que a torna tão tão interessante do ponto de vista criativo. Porque - eu só posso falar do meu caso, não sei como é que as outras pessoas se sentem - eu sei que era, do ponto de vista literário, muito mais restritiva, muito mais crítica em relação às minhas próprias coisas. Muito mais exigente, de uma exigência que não era produtiva, lá está. Preocupava-me muito mais com a qualidade, com a perfeição.
Porque ligava mais à forma como seria recebida pelos outros?
Não, isso nunca me interessou nada. Era uma luta que eu tinha comigo mesma, de exigência e, de facto, as coisas eram mais sofridas, era tudo mais pesado. Hoje, eu não escrevo a cantar e a dançar. Não é isso. Mas o que se libertou foi o prazer.