Luís de Matos:  "Os mágicos prototipam o futuro"
Carlos Carneiro / Global Imagens

Luís de Matos: "Os mágicos prototipam o futuro"

O próximo espetáculo de ilusões de Luís de Matos está marcado para hoje, em Lisboa. Segue-se o Porto no dia 10 de janeiro. O mágico português continua a espalhar a sua magia. Em Impossível sobe aos palcos nacionais (vai ainda a Faro, em janeiro) juntamente com alguns dos melhores mágicos internacionais.
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​A conversa decorreu no Coliseu do Porto, a sala de espetáculos, por excelência, da cidade. Numa manhã chuvosa mas amena, Luís de Matos, vestido de preto dos pés à cabeça, que é também a sua imagem de marca, sentou-se numa das centenas de cadeiras da sala vazia e falou sobre os seus espetáculos Luís de Matos Impossível ao Vivo, o passado e o presente da magia e da contínua capacidade de surpreender o ser humano.

O espetáculo Luís de Matos Impossível foi lançado em 2018 e, agora em 2023 e no próximo ano continua a ser exibido. Porque é que tem mantido o mesmo formato?
Surgiu em primeiro lugar como consequência de um programa de televisão que fizemos em 2017. Sempre procurei que cada nova série de programas representasse o meu crescimento profissional. Portanto, esteticamente e em termos de conteúdo e de abordagem são programas sempre diferentes. Mas esta última série de programas que fizemos para a RTP foi muito ambiciosa, sobretudo porque vivemos num momento em que as pessoas são bombardeadas com um certo tipo de magia que ficou muito popular com o advento da Internet, com as redes sociais e com a democratização dos equipamentos de vídeo dos nossos telefones. Com isso viu-se um conjunto de amantes da magia a criar ilusões para serem vistas nos nossos múltiplos dispositivos, e, claro, captadas por um único olhar, o da câmara. O que é muito bom e conveniente para algumas ilusões. Por outro lado, essa mesma democratização também levou a um advento de coisas menos credíveis. E isso criou um certo distanciamento com a espetacularidade da magia a ser questionada. Foi aí que procurei, à minha escala, reverter esse processo.

Como assim?
Fazendo pela primeira vez uma série de televisão de magia em direto. Ou seja - e dizia-o -, o que as pessoas assistiam na TV ainda não tinha acontecido. Portanto, existiram vários ingredientes para resgatar essa noção de que a magia bem suportada pode ser feita com vários ângulos de visão e quanto mais próxima mais espetacular ela pode ser. E aí começamos a trazer convidados, alguns dos melhores mágicos do mundo passaram pelo programa, com 200 pessoas no público...enfim, com tudo isso percebemos, quer pelas audiências quer pelas reações que existiam saudades desse tipo de espetáculos e quem os ia ver estava disponível para ser surpreendido. Por isso, quando a série de televisão terminou, pegamos no formato do Luís de Matos Impossível para o Luís de Matos Impossível Ao Vivo e criamos este modelo. A esperança foi, e é, que ao oferecermos qualidade, contemporaneidade, espetacularidade, diversidade e as pessoas que nos derem benefício da dúvida, poderão voltar no ano seguinte e serem, quem sabe, embaixadores do que viram. Em 2018 tivemos 25 mil espectadores, o que foi além da nossa expectativa. No ano seguinte foram 30 mil espectadores. Entretanto, preparamos em 2020 para fazer nova versão que não aconteceu por causa da pandemia. Só voltamos em dezembro de 2022 e tivemos 35 mil espectadores no total. Portanto, mesmo com os praticamente três anos de pausa, foi possível. Agora, temos, no mínimo, de continuar a surpreender e a cada ano subirmos a fasquia e o desejo de fazer mais e melhor.

Com todas as mudanças sociais, e tecnológicas, dos últimos anos, como tem sido a evolução dos espetáculos de magia. Há cada vez ilusões mais elaboradas e difíceis de fazer. O desafio está aí?
Em boa verdade não é preciso fazer mais impossíveis desde que se faça o impossível. Contudo, a linha da impossibilidade varia constantemente. Ou seja: o que era impossível para nós, seres humanos, há 50 anos já não é o que é impossível hoje. E essa impossibilidade vai-se alternar no futuro. Desde logo isso garante a sobrevivência e a permanente espetacularidade daquilo que a magia pode oferecer. Porque constantemente olhamos para a nova linha de impossibilidade, que está subjacente à evolução dos tempos, e à forma como pensamos, e que sentimos. Ora a nossa missão é estar sempre acima ou para lá dessa linha e isso faz dos mágicos um grupo muito interessante e que se pode dizer uma frase que, a princípio pode pode parecer muito pretensiosa, mas que é demonstrável quer na história quer por uma questão de sobrevivência: os mágicos prototipam o futuro. E porque é que só prototipam e não fazem o futuro, porque os mágicos e os cientistas estiveram sempre lado a lado e estarão sempre. Por uma razão muito simples: o homem sonha, tem novas necessidades, de viajar e comunicar, de bem estar. Queremos mais coisas, e a ciência tenta responder e concretizar esses desejos, de uma forma exata. Só que a ciência demora o seu tempo e os mágicos não, porque não fazemos à séria, nós só temos que fingir e criar a ilusão.

Luis de Matos no Coliseu
Carlos Carneiro / Global Imagens

E há exemplos concretos disso?
Sim, por exemplo, o relojoeiro e mágico francês Jean-Eugène Robert-Houdin, é considerado o pai da magia moderna porque levou para os teatros as suas ilusões - no centro de Paris, em 1843, graças ao mecenato de um conde. A certa altura, no reinado de Napoleão III, foi enviado para a Argélia para apresentar a sua magia e mostrar a "supremacia" francesa aos argelinos. E uma das suas ilusões, das mais conhecidas, foi quando parou com os dentes uma bala assinada e disparada por um argelino, e assim mostrou os seus superpoderes. Outro dos truques que levou foi mostrar que o mais forte dos argelinos não conseguia levantar um cofre de madeira. E isso funcionou por causa de eletroímanes, que hoje em dia estão em todo o lado. Naquele tempo existiam poucas pessoas que sabiam da sua existência, e ninguém sabia que o Houdin tinha colocado ímanes , um na mesa e outro no tal cofre. Foi uma apropriação de algo do domínio tecnológico mas que ainda não estava no domínio público. Mas há outro exemplo, o Charles Babbage, que criou o conceito do computador pessoal, diz que se inspirou quando viu um autómato que jogava xadrez e ganhava a qualquer pessoa sem ser derrotado. Esse autómato era uma ilusão, porque na verdade existia um exímio jogador de xadrez que manipulava micro alavancas para fazer as jogadas. Este é um outro exemplo em que a magia só teve de fingir que o tal autómato tinha um certo tipo de inteligência. Hoje em dia isso não teria impacto. Outro exemplo, é o de Georges Méliès, que foi um dos precursores do cinema, ele era mágico. E como foi técnico do teatro do Robert-Houdin, apresentou nesse mesmo local, em 1896, os seus primeiros filmes - pequenas cenas ao ar livre, como também faziam, na altura, os irmãos Lumière. Ele inventou filmes a cores antes da tecnologia existir porque pintou cada um dos frames em alguns dos filmes. E conseguiu chegar à lua, com o seu filme La Voyage dans la Lune (Viagem à Lua) de 1902, mesmo antes do homem lá ir.

E como transportam essa tecnologia ou inovação para os espetáculos de hoje?
No Impossível ao Vivo, há um momento em que desapareço do palco e apareço no meio do público, como se me tivesse teletransportado. E como o teletransporte é ainda impossível, ainda consigo fazer o truque. Mas quem me diz que daqui a 20 ou 30 anos não é possível ou que daqui a esse tempo o teletransportes não seja uma app? É tão impossível como era impossível ir à Lua, ou fazer chamadas de voz e imagem com uma pessoa que está no outro lado do mundo, ou enviar drones para matar uma determinada pessoa a milhares de quilómetros. Quero acreditar que, se calhar, no meio do público dos meus espetáculos esteja um jovem que seja um futuro cientista e ajude ou mesmo se envolva na possibilidade de um dia se inventar o teletransporte. Sei que é um salto grande e é um pouco parvo, mas a minha avó não acreditava que era possível tanta coisa que hoje é normal.

Mas mesmo assim, as pessoas ainda ficam admiradas e surpreendidas com um simples truque de cartas...
Sim, claro. A natureza do homem leva a que queiramos estar permanentemente em controle, o que somos, o que compramos, o que comemos. Mas tudo o que acontece à nossa volta é tão mais do que aquilo que controlamos. E existem várias falhas de perceção que o nosso cérebro ajuda a colmatar algumas das falhas. Porque mesmo aquilo que o eu não captei com a vista o cérebro ajuda a colmatar com ponto de ligação e temos uma imagem fracionada. Ora é aí que a magia tem sido muito estudada por neurocientistas porque perceberam que empiricamente sabemos mais do cérebro que eles. Fomos encontrando essas falhas por sobrevivência. Ao longo da história fomos percebendo que há técnicas, psicológicas ou de linguagem verbal, próprias à nossa condição que façam que existam coisas invisíveis à nossa perceção. Há uma regra que diz que o grande movimento cobre o pequeno movimento. E isso pode ser extrapolado para muitas coisas. Ou seja, dentro da perceção do espectador há coisas que não se registam, e os mágicos encontram esses momentos para que a surpresa exista. Isso se o público estiver predisposto a isso. Há pessoas que se sentam na cadeira e estão sempre a pensar que vão descobrir o truque. Mas para nós é interessante, as pessoas pagaram o bilhete e estão aqui em frustração. É fortemente possível que o público não saia vencedor dessa luta, a minha sugestão é como ir ao cinema ou peça de teatro ou um livro, é deixar-se levar e emocionar. Se temos essa capacidade humana, é melhor aproveitar. E as vivências e o momento que surgiu algo, vai ficar gravado na memória e aí sim, pensar como foi possível. Dou as boas vindas a qualquer tipo de espectador, atenção. E a magia é talvez um dos últimos redutos em que a impossibilidade surge debaixo do nosso escrutínio. Aproveitem. Não há nenhum outro sítio em que as coisas voam, ou pareçam que voam, e que aparecem e desaparecem.

Luis de Matos no Coliseu
Carlos Carneiro / Global Imagens

Vivemos uma altura com guerras, com crises, pandemias. Isso altera de alguma forma a predisposição do público em relação aos espetáculos de magia, as pessoas estão mais céticas e menos fantasiosas?
Quando digo que é o último reduto, acredito mesmo nisso. Já não há truques de cinema que nos surpreendam, já não há instrumento bélico que nos surpreenda. Há, agora, um resquício de assombro em nós. E quem vem aos nossos espetáculos repete, porque percebe que é das poucas manifestações onde nos podemos encontrar com o maravilhoso a acontecer, isto para lá dos atos de superação humana, de extrema compaixão, os prémios Nobel, etc., claro que existem mais coisas, mas começa a ser das poucas manifestações onde nos podemos encontrar com o maravilhoso. E muita gente diz: "ah, mas aquilo é mentira. E eu digo: sim, ainda bem, é por isso é que é espetacular, porque é mentira, se não era uma característica. E é por isso que eu acho que quando dizem a então, mas achas que hoje em dia a tecnologia pode matar a magia? Não pelo contrário. Adoramos e ficamos extasiados quando vemos uma grande interpretação feita à acapela e ficamos admirados, porque sabemos que, por outro lado, aquilo que ouvimos todos os dias na rádio teve muitos arranjos, existiu um algoritmo por detrás e, se calhar, foi cantado uma única vez. OK, muitas vezes até agradável de ouvir mas a capacidade de nos extasiarmos com uma música a ser cantada acapela é incrível. E o que nós fazemos são espetáculo acapela, não conseguimos fazer playback.

Como é o processo de criar truques de magia?
Há todo um conhecimento básico, é como saber como se constrói um piano e fazer música com as notas de música, no caso da magia, e na magia ainda se inventam notas de música, não há muitas, mas fruto da evolução tecnologia, por isso sim existem novos recursos que o criador pode usar para criar o truque, mas acima de tudo à uma forma de pensar que é tão mais profícua quanto maior for o conhecimento . No estúdio onde nós trabalhamos, tenho uma equipa de nove pessoas com quem trabalho há 28 anos. Vão às 9.00 da manhã para o trabalho. Trabalho até às 6.00 e no dia seguinte voltam. E lá pelo meio há dias em que a gente faz espetáculos e pelo meio há dias que escrevem. Ir na tua mãe há dias que? Fazemos uma televisão que as pessoas podem. Eu vim eu, eu, eu, eu Hoje vim de Coimbra para aqui. A falar com vários membros da equipa que estão neste momento a fazer cenas, porque o porque me lembrei de uma coisa ontem à noite ou porque estavam à espera de uma resposta minha para o quer que seja o porque estou curioso de saber se na verdade conseguimos. Passamos a nossa vida a gerir dois ingredientes: ambição e a humildade. A ambição de fazermos a melhor ideia do mundo, e dedicamos seis meses da nossa vida, e depois há que ter a humildade de perceber que não vai dar e temos de desistir. O tempo não é perdido porque se aprende muito no processo, mas por cada 20 coisas que tentamos o que vai acontecer no palco há duas que veem a luz do dia.

Quem são os mágicos que convida para os espetáculos, e que todos os anos são diferentes?
Somos cinco mágicos, eu faço cerca de 25% do espetáculo, ou um pouco mais, eles fazem o resto e são diferentes todos os anos, Por isso, 70 por cento do que as pessoas vão ver é novo. Pode não ser bom? Pode. Mas é muito improvável que não seja porque nós não vamos querer perder os 35 mil espectadores que tivemos no ano passado.

O Luís de Matos, figura pública, é muito diferente do Luís de Matos cidadão, existem dois?
Há, mas fazem parte um do outro. Não sou no palco uma pessoa diferente daquilo que sou no dia a dia. Sou composto por duas facetas. O cidadão anónimo não diz nada que o Luís em palco não se identifique, e o Luís em cima do palco não faz nada que o cidadão anónimo não se identifique. Porém, existem opiniões ou convenções ou estados de espírito que são mais próprios da vida quotidiana do que da vida em cima do palco. Mas sinto um carinho incrível do público e ao mesmo tempo uma grande responsabilidade.

O seu trabalho é uma constante pressão para que a ilusão não se torne desilusão?
Sim, basta distraímo-nos um pouco. E digo sempre às pessoas que me acompanham e estão próximas, quando acharem que só estou em palco por absoluto egoísmo, avisem-me. Não é justo por tudo o que fizemos até hoje fazer algo que não tem chama. O palco é um local sagrado não no sentido religioso mas por ser um espaço que muda e faz mudar, é uma porta para a imaginação e para as emoções, por isso deve ser usado com respeito e com dignidade, respeito pelo espaço e por quem está a assistir.

Próximas datas do Luís de Matos Impossível ao Vivo, que conta também com os mágicos Laurent Piron, Léa Kyle, Raymond Crowe e Winston Fuenmayor:

Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, entre os dias 20 de dezembro a 7 de janeiro.

Coliseu Porto Ageas, entre os dias 10 a 14 de janeiro

Teatro das Figuras, em Faro, entre os dias 17 a 21 de janeiro

filipe.gil@dn.pt

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