O mais arriscado passo de carreira para um dos atores do momento em Hollywood, Cale Landry Jones.
O mais arriscado passo de carreira para um dos atores do momento em Hollywood, Cale Landry Jones.

Luc Besson transforma Caleb Landry Jones em Piaf e Marilyn

Depois de uma passagem controversa no Festival de Veneza, estreia-se esta semana o novo filme de Luc Besson, Dogman, cinema de ação de tónica vigilante e com uma personagem abusada que se torna um paraplégico drag queen vingativo. Caleb Landry Jones foi o ator escolhido para a extravagância.
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Quando o homem está com problemas, Deus envia-lhe um cão.” A frase é do poeta e político Alphonse de Lamartine e serve como tópico inicial ao novo filme de Luc Besson, o cineasta de Vertigem Azul e O 5º Elemento, nos últimos anos fustigado por fracassos de bilheteira e uma acusação de crime sexual contra uma atriz. Dogman, que esteve em competição no último Festival de Veneza, mistura elementos de vingança vigilante, empoderamento queer e o universo mitológico de Edith Piaf.

O protagonista é Doug, um homem americano traumatizado por ter sido fechado pelo seu cruel pai numa gaiola com cães. Em adulto, fica paraplégico, mas consegue desenvolver um dom com cães vadios, treinando-os depois para criar uma rede de crime e vingar-se de quem o ameaça. Ao mesmo tempo, mantém uma atividade como travesti num clube de gosto duvidoso. Dogman é uma espécie de eleitor fanático de um partido tipo PAN, um solitário que apenas confia nos amigos de quatro patas. Uma intriga imaginada por Besson a partir de um artigo que leu sobre um pai que aprisionou o filho numa gaiola de cães.

Em Veneza, num hotel sem luxos no Lido, Besson enfrenta sorridente a imprensa e com a sua estrela ao lado, o americano Caleb Landry Jones, Melhor Ator no Festival de Cannes por Nitram e espantoso em filmes como Histórias Que Fazem o Coração Crescer  e Pela Rainha, com uma farta cabeleira loura a remeter para o estilo de Kurt Cobain.

O polémico Luc Besson pediu permissão a Matteo Garrone para poder ter um título igual ao seu filme de 2018.


É sintomático que estejam juntos: Caleb em drag  é a espampanante atração de um filme violento e que se deixa confiar por uma estética de ação muito pouco contemporânea. “Escolhi o Caleb porque vi nos outros filmes dele que poderia convocar uma data de coisas diferentes e uma miríade de cores. Para um realizador é muito bom quando tem um ator que lhe dá certezas, mas numa aventura como esta, mais importante, é saber escolher a pessoa. Sempre ouvi aquele ditado que nos diz para não atravessarmos o Atlântico com um desconhecido. Fazendo a metáfora canina, primeiro cheirámo-nos e depois de algumas conversas e copos sobre a vida, vimos que éramos do mesmo planeta. Eu sou da Normandia, ele é do Texas, mas parece que somos vizinhos”, Besson confessava, e o seu ator portador de todas as extravagâncias concordava: “As pessoas nem imaginam como somos iguais! Mas para fazer este filme não precisei de ter assim tanta coragem, mesmo com peruca loira e numa cadeira de rodas.

Qualquer altura em que tenho uma câmara apontada à minha cara deixa-me nervoso, é certo, sobretudo porque muitas vezes duvido do meu valor. Porém, gosto de estar naquela posição num plateau  que te obriga a arriscar, caso contrário foges para casa. Adoro ser ator, porque canalizo todos os meus pensamentos para algo prático. E o que é bom com o Luc Besson é que posso jogar com os meus erros - o que parece falhanço não é bem falhanço. Se calhar, o take seguinte melhora porque antes falhaste. A grande verdade é que para este papel não sabia como começar. O Luc ajudou-me muito a montar a personagem, mas foi sempre aos poucos e depois de algumas camadas deixei-me ir, embora o desafio maior fosse cantar em francês, logo eu que não falo a língua.”

Caleb, que estava em maré de confissões, jurava que houve uma identificação com esta personagem perturbada: “Eu escapo de mim próprio no cinema, ele escapa-se nas performances das divas. Eu também consigo escapar dos problemas quando escrevo uma canção. É aquele momento em que ninguém me pode dizer o que fazer. A sociedade diz que uma pessoa é o resultado do lugar de onde vem, que um homem é isto e uma mulher aquilo, mas ao ver cinema percebi que poderia identificar-me com personagens diferentes. O cinema ajudou-me a sentir, ajudou-me a pensar. E foi por isso que quis ser ator. Tudo começou no grupo de teatro do liceu, foi aí que entendi que poderia gritar bem alto.”

Se um fala em gritar, o outro aborda a liberdade: “Desde os 16 anos que escrevo todas as manhãs. É nessa altura que me sinto mesmo livre - ninguém me diz para escrever isto ou aquilo e não me importo de depois meter o que escrevi no lixo. Estou na boa quando não gostam do que escrevi. No caso de Dogman, que é uma história verdadeira, fiquei preso pelo trajeto deste rapaz e quis saber mais. Até que cheguei ao ponto que estou a escrever a Marilyn Monroe numa cadeira de rodas, ainda para mais a lutar com cães contra um gangue mexicano. Nessa altura, pensei: talvez isto seja demais! Só que não...Fazer Dogman foi como cozinhar: pus uns ingredientes improváveis, tipo mostarda com açúcar, e não achei que ficasse mal.” Palavras do realizador que acrescenta não ter problemas de associar o tema do travestismo com a saúde mental: “Os shows drag  deste homem preso a uma cadeira de rodas são a única possibilidade de escapar. Esse tipo de críticas é de uma injustiça tremenda. Deixem-me a mim ser um artista! Os drags  que vemos nos filmes são mesmo queens verdadeiras e estavam radiantes de nós filmarmos o seu mundo. Mal leram o guião não pararam de nos agradecer...”

Rui Pedro Tendinha, em Veneza

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