Levou bastidores da política francesa ao cinema. E vai ter uma BD sobre Portugal

No seu primeiro filme, <em>Le Poulain</em>, Mathieu Sapin usa a experiência que ganhou com políticos como François Hollande ou Emmanuel Macron. Próximo projeto leva o francês ao século XVII, mas Portugal está nos seus planos.
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Arnaud não tem qualquer experiência profissional além de dar umas explicações, não sabe nada de política, mas "falo quatro línguas", explica a Agnès Karadzic quando uma coincidência o coloca no gabinete da diretora de comunicação de uma das candidatas às presidenciais francesas. Afastado o assistente anterior, a experiente Agnès parece achar graça a este "brinquedo" novo e decide contratar o jovem Arnaud. De servir cafés a carregar coroas de flores para funerais, Arnaud depressa passa para o nível seguinte da aprendizagem dos bastidores políticos: o da mentira, que apenas antecede a traição.

Arnaud é a personagem principal de Le Poulain, o primeiro filme de Mathieu Sapin como realizador. Mas será que se inspira no próprio autor? "É uma ficção total. É o percurso de um jovem que não conhece o meio, que chega à política por acaso, um pouco como eu, e que lhe ganha o gosto", garante Mathieu Sapin, sentado na entrada do Cinema São Jorge, em Lisboa, onde horas antes de o seu filme se estrear em Portugal, diante de uma plateia completamente cheia, no âmbito dos 20 anos da Festa do Cinema Francês.

Mais: "O que Arnaud tem de diferente de mim é a história do desejo. Ele fica fascinado com esta mulher mais velha [Agnès Karadzic, interpretada por Alexandra Lamy] do que ele, poderosa. Por isso a personagem do Arnaud [interpretado pelo franco-britânico Finnegan Oldfield] é parecida comigo mas não deixa de ser uma personagem de ficção."

O projeto de Le Poulain (à letra "O Potro", mas aqui mais no sentido de "O Herdeiro" ou "O Delfim") há muito estava em cima da mesa de Mathieu Sapin. Quando nos conhecemos em 2015 na Amadora BD já o desenhador confessava em entrevista dada ao DN estar a preparar a sua passagem para o cinema.

A política é tudo menos um mundo desconhecido para Mathieu Sapin. Aos 45 anos, o desenhador nascido em Dijon não só é autor da banda desenhada Campagne Présidentielle, para a qual seguiu a campanha do socialista François Hollande para a presidência em 2011, como durante um ano, de julho de 2013 a julho de 2014, foi presença assídua no Eliseu, onde seguiu o já presidente Hollande para o seu álbum Le Château (O Castelo, numa tradução literal).

Como um campo de férias

E passar da banda desenhada para o cinema foi fácil? "De todo. A escrita é difícil. Por isso não quis escrever sozinho e acabei por escrever o argumento com Noé Debré, que é um excelente guionista. Ele ajudou-me muito. E depois a filmagem foi uma experiência muito boa. Finnegan é muito querido", explica Mathieu, com o "querido" a sair-lhe em português no meio de uma conversa toda ela em francês.

Não espanta que o desenhador tornado realizador fale um pouco de português, afinal é casado com uma portuguesa e os verões são muitas vezes passados na Ericeira, em casa dos sogros com as duas filhas.

Mathieu aproveita ainda para elogiar Alexandra Lamy, a atriz que dá vida à pérfida Agnès Karadzic, uma especialista em comunicação política que não hesita em virar a casaca e trocar de candidato a meio da campanha se isso servir os seus interesses. Tal como não hesita em usar o seu jovem assistente para uma relação fugaz desde que isso não se torne "assunto de Estado".

O filme, apesar de seguir uma campanha que passa por toda a França, decorreu em Montpellier. "Estávamos todos juntos, o ambiente era um pouco como um campo de férias", explica Sapin, enquanto confessa que esta é uma experiência que gostava de repetir.
A escolha de uma comédia para o seu primeiro filme não espanta: "Não sei fazer de outra forma. Como observei muito o mundo da política para as BD que fiz, percebi que se por vezes há coisas trágicas também há muita coisa engraçada, muita coisa ridícula, divertida. Por isso foi fácil inspirar-me nessa experiência para criar personagens um pouco ridículas, um pouco loucas". Se dúvidas tivesse sobre esse caminho, Mathieu lembra a conversa com uma política francesa que lhe confessava que naquele meio todos são "loucos". "Ela própria é louca!", ri-se.

Em Le Poulain há uma mulher na Presidência da República. O que nunca aconteceu em França, apesar de já ter tido uma primeira-ministra. E Mathieu, que nas suas BD surge muitas vezes como uma das personagens [sempre pequenino, um reflexo da discrição que gosta de desenvolver enquanto trabalha, como me explicava em conversa anterior], também aqui tem um pequeníssimo papel no fim. "É um piscar de olho. Apareço numa das cenas finais, no Eliseu, sou o chefe de gabinete da presidente." Essa cena, tal como todas as da sequência final do filme, foi filmada mesmo no Palácio do Eliseu, a residência oficial do presidente de França, em Paris. "Conseguimos autorização para filmar no Eliseu. Foi muito rápido. Foram três horas para fazer alguns planos. Mas torna tudo mais realista."

Fascinado com o trabalho no cinema, Mathieu Sapin garante que a experiência é para repetir. "É um outro público. O filme estreou-se há um ano em França e passou na televisão em setembro. Todos podem ver o nosso trabalho."

Mas a BD é para continuar, garante. E depois de ter passado um ano no Eliseu de Hollande, que tal uma BD sobre Emmanuel Macron? "Estou a fazer uma BD neste momento que não é sobre Macron mas que fala dele. Na revista Zadig tenho umas páginas sobre os bastidores da política Macron", explica Sapin, confessando que, apesar de o presidente ser um homem bem-parecido, não é difícil de desenhar.

Farto de políticos

Na verdade, conta, tudo está ligado. "Quando estava a fazer Le Poulain, voltei para observar a campanha presidencial de 2017. E estive nos bastidores do debate entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen. Nessa altura, conheci-o e ele disse-me que tinha adorado a minha BD sobre Gerard Depardieu." Em 2017, Sapin editou Gérard, Cinq Années dans les Pattes de Depardieu, em que segue o ator desde Paris à Rússia, passando por Espanha ou pelo Azerbaijão.

Habituado a lidar com políticos, Mathieu Sapin explica que estando eles tão habituados a "jogar com a sedução, com a simpatia, o difícil é manter a objetividade. Ficar apenas a observar e a descrever o que se vê, sem cumplicidade". Afinal, "o trabalho deles é criar essa cumplicidade". Quanto a Hollande e a Macron, confessa que são muito diferentes. "Macron é uma pessoa que adora o show, adora estar em palco. É como a stand-up. Ele o microfone, fala com as pessoas, vê-se que está à vontade. Está muito mais à vontade do que Hollande." Depois há outras diferenças: "Hollande não usava computador. Nunca o vi com um computador", garante.

Confessando-se cansado de políticos, Mathieu Sapin garante que mais do que desenhar Donald Trump, Boris Johnson ou qualquer outro dos líderes mais polémicos da atualidade, o seu próximo trabalho inclui uma viagem no tempo. "Vou falar do século XVII em França, a época de Luís XIV. E por isso fiz muita pesquisa histórica. É apaixonante. Quando começas a tentar contar uma história que aconteceu no passado."

A sua inspiração, confessa, foi o dramaturgo Jean Racine, que não só escreveu peças de teatro como foi responsável pela comunicação do rei Luís XIV. "Ninguém sabe isto! Durante 30 anos, Racine escreveu a história - de forma propagandística - de Luís XIV." A sua nova BD aborda esta época, em Paris.

E Portugal? "Adoro!" Durante o verão, Mathieu Sapin passa sempre um mês a trabalhar em casa dos sogros, onde tem um atelier. E se vir viver para cá de vez não está nos planos, uma BD sobre o nosso país, essa, já está em andamento.

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