No imaginário popular, o movimento surrealista tende a ser reconhecido e celebrado sobretudo através das suas imagens. Convenhamos que há boas razões para que seja assim. Simplificando, lembremos apenas as singularidades das pinturas de Max Ernst ou Salvador Dalí, sem esquecer o cinema de Luis Buñuel. Em qualquer caso, tudo isso aconteceu a par de muitas e fascinantes proezas literárias, dos poemas de Paul Éluard até ao “teatro mental” de O Amor Louco, de André Breton. Enfim, se é que nos tínhamos esquecido, será a altura de relançar o nome de Leonora Carrington (1917-2011) nesse espaço das nossas memórias - o seu romance A Corneta Acústica (ed. Antígona, tradução de Inês Dias) aí está, protagonizando um dos grandes acontecimentos literários deste final de ano..A primeira edição de A Corneta Acústica surgiu em 1974, numa altura em que a vida pessoal e artística (como separar uma da outra?) de Carrington já tinha sido marcada por muitas convulsões. Por um lado, rebelando-se contra o conservadorismo da sua família da região de Lancashire, no noroeste inglês; por outro lado, apaixonando-se por Max Ernst e, a seu lado, envolvendo-se no combate estético e simbólico do surrealismo - em 1939, cada um deles pintou um retrato do outro..Os quadros de Carrington podem servir-nos de porta de entrada na sua escrita, no sentido em que, de modo visceralmente surrealista, nascem da conjugação de um fundamental paradoxo visual: dar a ver figuras e objetos que identificamos, ao mesmo tempo organizando-os em cenas (com toda a carga teatral que a palavra “cena” pode envolver) que desafiam a organização do mundo em que habitualmente conhecemos essas figuras e esses objetos. Tudo isso ecoa, aliás, na desconcertante singeleza das ilustrações do livro, da autoria do filho da escritora, Pablo Weisz Carrington, artista plástico dedicado sobretudo ao desenho..Como qualquer romance genuíno, A Corneta Acústica não cabe num mero resumo factual. Estamos mesmo perante um livro que nos confronta com a dificuldade de definir o que é um “facto”, para mais fazendo-o através um misto envolvente de ingenuidade e humor. Muito cedo pressentimos essas componentes na festiva descrição dos hábitos alimentares da narradora: “Nunca como carne porque penso que não é correto privar os animais da sua vida, ainda para mais quando eles são tão difíceis de mastigar”..A Corneta Acústica Leonora CarringtonAntígona228 páginas.É neste carrossel de palavras que conhecemos essa narradora, Marian Leatherby, uma simpática velhinha de 92 anos que passou a ouvir melhor o que acontece à sua volta (graças a uma corneta acústica, precisamente). As suas atribulações, por vezes dramáticas, quase sempre estranhamente divertidas, vão agravar-se quando a família a desterra para um lar da terceira idade de inspiração cristã e organização, no mínimo, perversa, contaminada por muitos jogos conspirativos..Marian surge, assim, como uma personagem que superou todas as ilusões românticas ou caritativas: “Fui enviada para aqui unicamente porque a minha família me queria tirar do caminho sem ficar com um assassínio na consciência.” Com as cumplicidades que marcam o seu dia a dia, a começar pela amiga Carmella (que lhe oferece a corneta), ela vai acumulando figuras de espanto face ao absurdo que domina a frágil existência dos humanos - a começar pela discussão da lógica (ou falta dela) do poder político. Carmella é, nesse aspeto, eloquente: “Não consigo compreender como é que milhões e milhões de pessoas obedecem a uma coleção doentia de cavalheiros que chamam a si mesmos ‘Governo’?”..Memória de Lee Miller.No prefácio desta edição de A Corneta Acústica, escrito em 2005 pela escritora, dramaturga e jornalista escocesa Ali Smith, encontramos uma série de memórias que nos ajudam a contextualizar o lugar da escrita na vida de Leonora Carrington, incluindo o “destino”, depois de conhecer Max Ernst, de ser reconhecida como “musa” dos surrealistas - sem esquecer que, para a sua visão do mundo, ser musa de alguém seria sempre algo que a levaria a “rir-se com desprezo”..Entre as muitas e preciosas informações do prefácio, Ali Smith recorda a sua proximidade com a fotógrafa Lee Miller (1907-1977), recentemente revisitada pelo cinema no filme Lee Miller: Na Linha da Frente, de Ellen Kuras, com Kate Winslet no papel central. Há, de facto, nas fotografias de Miller um enfrentamento da radical violência do real, em “registos reais-surreais” como, por exemplo, os “corpos empilhados das vítimas de Dachau”. Carrington é essa escritora da vibração perturbante do real, paralela à imaginação de um mundo capaz de reinventar as formas da sua governação.