Leonardo António: "Quero quebrar tabus!"
Um filme português que não fica ridículo a não querer ser cinema português. Submissão, de Leonardo António, consegue esse raro feito porque tem personalidade própria e não tenta copiar o código dos melhores "courtroom dramas" americanos. É um filme de tribunal assumido, mas de um tribunal português, sendo, acima de tudo, uma história de abuso e violência sobre uma mulher que decide falar após ter sido violada pelo marido. A partir daí, a história coloca a acusação e a defesa a esgrimirem argumentos sobre um caso que é igual aos muitos que cada vez mais assolam a sociedade portuguesa, ainda presa a procedimentos patriarcais intoleráveis.
Depois do esquecível Frágil Som do meu Motor, Submissão marca o regresso de um cineasta que surpreende por uma direção de atores rigorosa e sóbria. Uma surpresa de alguém que não reivindica um lugar no clube dos cineastas portugueses "aprovados" por uma certa elite.
Reparei que estava comovido a apresentar o filme na antestreia em Lisboa. Terá a ver com o espaço que levou este Submissão a aparecer depois de O Frágil Som do meu Motor?
Era de satisfação, de finalmente estar a mostrá-lo a uma sala cheia após tanto tempo. E foi também emocionante porque sinto que nestes últimos anos houve uma evolução daquilo que sou como realizador, produtor e argumentista. Acho que fiz um filme bastante atual com um tema muito muito importante. Uma das minhas ideias como realizador é filmar temas que ninguém quer falar.
Este é um filme incómodo?
Quero falar sobre temas incómodos para a sociedade e quebrar tabus.
E há um lado em Submissão muito #MeToo, de apelas ao direito das mulheres acusarem...
O #MeToo foi um movimento importante para o cinema, mas também sei que é preciso pausar e refletir perante aquela febre dos exageros e de parar de pensar que tudo iria mudar de repente. Na sociedade ocidental foi importante para estabelecer normas e regras daquilo que é aceitável. Há certos temas que não devem ser discutidos no tribunal, mas sim no lar. A razão pela qual existe uma escalada para a violência nas questões de intimidade sexual é o facto de não se falar. E essa violência resulta muitas vezes em homicídio.
A protagonista desse seu filme é alguém que toma uma decisão: expor a violência sexual do seu conjugue...
Ela é alguém que atravessa um percurso através do qual se verifica ser vítima de uma violação, desde o processo forense ao legal. E creio que a lei, por respeito, não devia designar no processo a vítima como assistente por se tratar de um crime público...É uma desvalorização do seu sofrimento.
Parte deste elenco é composto por atores que as pessoas conhecem melhor das telenovelas, apesar de não haver aqui as interpretações "à" novela. Não terá sido a direção dos atores um dos seus maiores cuidados?
Contratei a atriz Cláudia Gaiolas para dirigir os atores. Tivemos um mês e meio de ensaios e queria que nos apenas 18 dias de rodagem que tive já tivesse os atores preparados . E sente-se essa unidade muito forte entre eles. Estou muito orgulhoso deste processo - aprendi imenso. Acho ainda que este argumento ajudou a desamarrar os atores. Criei a oportunidade para cada um poder ter o seu próprio registo.
Este será o último filme que em vamos poder ver Maria João Abreu...
Foi um privilégio trabalhar com ela, mas é infelizmente o seu último filme. A memória mais forte que vou ficar da João é a forma como incentivava os colegas, bem como a maneira tão pacífica como encarnou a personagem. Houve ainda um momento em que a sua personagem, a advogada, se tinha que comover e, mal lhe pedi isso, num instante deu-me...Foi quase automático, muito poucos conseguem isso. Era uma excelente atriz!
Assume-se como um cineasta contracorrente, daqueles que está do lado da facção que acredita num cinema mais narrativo, mais perto dessa ideia do "grande público"?
O que sonhei e o que é real são coisas completamente diferentes. O que vejo agora no cinema português são mudanças muito glaciares, principalmente agora que as plataformas, como a Netflix, estão a meter dinheiro em Portugal. Vai haver um investimento na ficção sem precedentes. Seja como for, sou dos que advoga que há lugar para todos tipos de cinema. Eu, como cineasta, sinto que o processo de cada filme deve começar pela distribuição, que é o principal ponto entre o filme e o público. Antes de abordar um técnico ou um ator, para Submissão, a prioridade foi a distribuição, que é quem tem de dizer o sim. Nesse sentido, muitas vezes os filmes não são desejados pois os produtores depois de receberem o subsídio não se preocupam com a distribuição...
Numa altura que o cinema português praticamente só faz números com comédias pimba, sente este tema tão duro possa afastar público das salas?
Se as pessoas se assustarem então é bom sinal! Significa que o propósito do filme está colmatado. Submissão é sobre o matrimónio e tem a questão da cultura patriarcal muito assente. Nesse sentido, admito que quota-parte de um certo público não informado sobre isso se possa sentir mal. Por outro lado, acredito que ao mesmo tempo é um filme apaziguador...Gostaria que as pessoas fossem ver o filme sem serem coagidas. Independentemente dos atuais números, este filme vai ter o seu público certo.
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