Esta é uma conversa sobre um disco novo, o regresso de Lena d’Água aos palcos, mas é também uma conversa em que cabe boa parte da vida de quem tem mais de 40 anos: as difíceis andanças dos músicos portugueses nas estradas do Portugal dos Anos 1980, o Benfica, a devoção do avô materno da jornalista pelo pai da cantora, José Águas, avançado do Benfica e da seleção nacional, que terá inspirado em António Lobo Antunes o desejo de ser o Águas da Literatura.Mas, primeiro, a notícia: Lena d’Água sobe ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, na próxima 3.ª feira, 12, para apresentar o novo álbum de originais, Tropical Glaciar, que sairá para o mercado na 6.ª feira, 15 de novembro. Acompanhá-la-ão Pedro da Silva Martins (guitarra e voz), Luís J. Martins (guitarra e voz), Nuno Prata (baixo), Cat Falcão (guitarra e voz), Sérgio Nascimento (bateria, percussão e voz) e Vicente Santos (teclado e voz).Com este disco e espetáculo, renova-se a parceria da cantora com Pedro da Silva Martins, iniciada em 2019, com o álbum anterior, Desalmadamente. Deste Tropical Glaciar saíram já três singles, que, de certo modo, permitiram a Lena testar as reações do público: “Tem sido muito engraçado. O primeiro single foi O Que Fomos e o Que Somos e tenho testemunhos de vários homens, sempre mais renitentes em mostrar emoções, a dizer que choraram. Mas a reação mais gira foi do meu sobrinho André (filho mais velho do antigo internacional do Benfica, Rui Águas), que me disse ter ficado muito desconcertado. Não estava à espera de algo tão profundo e, de certa maneira, melancólico. E eu disse-lhe: ‘Ai é? Então espera aí, que vais ver. E assim surgiu o segundo single, Pop Toma.”.Tropical Glaciar, já o vimos, confirma a colaboração de Lena com Pedro da Silva Martins, iniciada no final da década passada. “Eu conhecia-o de vista, dos Deolinda, e lembro-me de lhe ter enviado uma mensagem, via Messenger talvez, a dar-lhe os parabéns quando ele fez o Desfado para a Ana Moura, que eu adorei.”O primeiro encontro ao “vivo e a cores” terá acontecido num evento organizado pelo radialista e apresentador Fernando Alvim, o Festival Alternativo da Canção: “Em edições anteriores, eu já tinha sido júri, naquela fui convidada para cantar duas canções, que acabaram por ser mais porque quando cantei A Culpa é da Vontade, do António Variações, aquela malta calou-se toda e desataram a pedir-me para cantar mais temas. Foi aí que o Pedro me disse que ainda ia escrever para mim.”.O que cumpriu, já que assinou três canções que Lena apresentou no Festival da Canção de 2017. Seguir-se-iam vários espetáculos, entre as quais ficou particularmente memorável a sessão na Casa Independente, em Lisboa, com as participações de Benjamin e da banda portuguesa They’re Heading West. “Dentro de mim, eu sentia que ia aparecer alguém, como o Pedro, que me ajudaria a dar uma volta diferente à minha carreira”, conta. “Faltava-me quem escrevesse originais. Quando era miúda, adorava escrever, gosto muito de palavras (cheguei a escrever dois temas, Para ti e Da Noite, e participei noutros, com alguns versos), mas não me sinto uma compositora. Mais tarde, cheguei a aprender piano, mas foi por gosto, nunca foi com o intuito de me acompanhar.”.Este novo disco foi feito de forma bastante diferente do anterior: “No Desalmadamente, o Pedro deu-nos as canções para as trabalharmos. Este processo demorou perto de dois anos, no final dos quais saiu logo o álbum. Desta vez, quando o Pedro fez as canções, mandou logo umas maquetes. Mas tivemos alguma dificuldade em escolher dez temas para o disco porque todos eram muito bons.”Outra novidade em relação ao trabalho de 2019 são os três singles, que permitiram a Lena acalmar alguma ansiedade: “Estava a ver o tempo a passar e sentia-me um bocadinho nervosa. Deve ter sido por isso que ele escreveu uma última canção a que deu o título de Sem Pressa”, brinca. .Fotografia de Rita Carmo. Rita Carmo | Rita Carmo.Um país musical que mudou para melhor.Esta espécie de segundo ato da carreira de Lena d’ Água tem-lhe permitido ser descoberta pelos filhos dos miúdos que vibraram com Olha o Robot ou Dou-te um Doce, na década de 1980: “Vê lá que tenho um clube de fãs, liderado por dois putos de 17 e 14 anos”, diz-me. “É o primeiro clube de fãs que tenho na vida!”Reconhece que os meios de difusão da música mudaram muito e permitem aos miúdos de hoje ir à procura, comparar versões, conhecer muito mais: “O que é que nós tínhamos? Os programas de discos pedidos na rádio. Lembro-me que, pouco antes do 25 de Abril, liguei para a rádio a pedir que passassem o José Mário Branco e a resposta que ouvi foi: ‘Esse senhor não é português.’ O mesmo teria acontecido se tivesse pedido o Zeca Afonso. Foi uma reação tão violenta, que ainda hoje me lembro dela com grande precisão.”Entre o país de hoje e o desse tempo, Lena não hesita em considerar que muita coisa mudou para melhor: “O que nós, artistas, víamos e sofríamos por essas estradas fora, que eram péssimas, é de meter medo - como aquela em que morreu o Carlos Paião. E havia públicos muito conservadores, que nos tratavam muito mal. No tempo dos Salada de Frutas, lembro-me de acolhermos o Marco Paulo no nosso camarim improvisado, porque ele tinha sido agredido e estava a desfalecer. Eu própria levei um pontapé, em Campo de Besteiros, nunca me hei de esquecer. E depois, nessa noite, ainda veio um carro atrás de nós, em perseguição, para atirar ovos contra a nossa carrinha. Um horror.”Apesar do enorme sucesso de público que teve, com os Salada de Frutas, a Banda Atlântida ou a solo, Lena d’ Água considera que a crítica nacional nunca foi justa com ela: “Lembro-me do disco Perto de Mim receber duas estrelas em cinco. Diziam que eu era afinada demais, que tinha uma voz muito limpinha. Isto custa-me, porque o Luís Pedro Fonseca [autor de vários temas cantados por Lena] nunca foi reconhecido como deveria.”.Na década de 1990, apaixonou-se por temas clássicos. Durante uma década, integrou o trio Canções do Século, com Helena Vieira e Rita Guerra: “Correu bem, fiz ali amigas e tínhamos o maestro Pedro Osório, que era um homem incrível, com uma cultura musical ímpar.” Esta revisitação dos clássicos começara, aliás, no programa de humor de Herman José, Casino Royale, ambientado na época da 2.ª Guerra Mundial, num ambiente supostamente apinhado de espiões: “Quando estava a preparar a minha participação, o Pedro Osório, que era o diretor musical do programa, mostrou-me um tema francês, Mon Ange, que me cativou logo. Foi uma experiência muito boa, em que fui acompanhada por uma pequena orquestra de oito elementos.”Ainda por causa deste fascínio por sons de outros tempos, Lena cantou Billie Holiday no Hot Clube de Portugal e em vários teatros do país. Mas, reconhece, faltavam-lhe coisas novas: “Não me posso queixar de que me tenham esquecido. No fundo, fui-me deixando estar, a responsabilidade foi minha.” Mas admite que, no mundo da música, como no do cinema ou da televisão, “o envelhecimento é mais gravoso para as mulheres do que para os homens.”Não se pense, todavia, que Lena se alimenta de nostalgia. Para descobrir novos valores ouve a Antena 3 (“foi onde descobri o Benjamin, que adoro”) e confessa sentir uma paixão assolapada por Billie Eilish: “Que coisa mais maravilhosa! As letras, a música, a imagem dela, é tudo incrível. É tão boa, que nem me consigo lembrar de alguém que se lhe compare.”A morar numa aldeia a norte de Lisboa há vários anos, a cantora conta-me que vai voltar aos gira-discos, até porque viu um modelo que lhe permite ouvir vinil, mas também CD e até cassetes, que ela ainda tem no arquivo pessoal. No telemóvel, guarda músicas de hoje e de ontem, mas tem também digitalizadas, por ela própria, memórias da sua própria família, que são também um bocadinho de todos nós.Como se fôssemos parentes. Conto-lhe do meu avô que tinha o retrato de José Águas na parede da sala, a mais famosa das fotos, com os braços a erguerem a Taça dos Clubes Campeões Europeus, conquistada em 1961, contra o Real Madrid. A tal que o Benfica bisaria no ano seguinte, para nunca mais a ganhar, segundo a lenda, por causa de uma praga rogada pelo treinador Béla Guttmann, ao abandonar o clube. “Isso é mito”, adverte logo, “é que eu tenho aqui [e aponta para o telemóvel] uma carta dele ao meu pai, a assegurar que isso nunca aconteceu.”Entre as memórias cuidadas, deste passado, e os projetos de futuro, Lena d’Água mantém o timbre de menina, que sempre lhe conhecemos. Quando lhe pergunto se continua rebelde, não hesita: “É claro”..Capa do disco Tropical Glaciar, a ser editado em breve.