No passado mês de maio, O Agente Secreto foi um dos grandes acontecimentos em Cannes, tendo recebido dois dos prémios mais importantes do festival, atribuídos a Kleber Mendonça Filho (realização) e Wagner Moura (interpretação). Evocando histórias vividas durante a ditadura militar, Kleber Mendonça Filho propõe um labirinto de factos e emoções em que as convulsões políticas se cruzam com memórias indissociáveis da sua própria família — o resultado envolve-nos através de uma teia dramática que nos remete para a discussão do que, nestes tempos de saturação televisiva, é ou pode ser um certo realismo histórico.Com chancela da Nitrato Filmes, distribuidora que se tem empenhado na divulgação da produção cinematográfica brasileira, o filme chega esta quinta-feira, dia 6 de novembro, às salas de todo o país, integrando também a homenagem a Wagner Moura organizada pelo LEFFEST — o ator estará presente na sessão de O Agente Secreto marcada para sexta-feira (21h30), no Cinema Nimas.A ação de O Agente Secreto decorre em 1977, ou seja, o ano em que celebrou o seu nono aniversário. Ora, mesmo sem procurarmos qualquer tipo de aproximação ou coincidência com o protagonista do filme, será que, para si, faz sentido dizer que no filme há alguma componente autobiográfica?Creio que há várias maneiras de responder a essa pergunta. Por exemplo, gosto muito do filme Zodíaco [2007], de David Fincher. Claro que não acho que Fincher tenha qualquer relação com a história daquele assassino. O certo é que, além de ser um thriller sobre um serial killer, há nele uma força que resulta do facto de ser uma reconstituição da cidade onde, em criança, o próprio Fincher viveu — vi o filme pela primeira vez em Cannes, no Auditório Lumière, já lá vão 18 anos, e a densidade dos detalhes impressionou-me imenso. Quis que O Agente Secreto tivesse também esse tipo de densidade: não é sobre nenhum facto histórico, é antes sobre a recordação muito viva de uma época.Época que, portanto, o marcou de forma especial...Na primeira entrevista que dei para o dossier de imprensa do filme, fui muito sincero quando disse que essa época me marcou porque aconteceu uma crise de saúde da minha mãe. Não quer dizer que tenha uma memória prodigiosa e me lembre de tudo de 1977, 78, 79... Lembro-me por causa dessa crise e também porque, na altura, o meu tio mais novo me levava ao cinema, com o meu irmão, para nos tirar da realidade da casa — guardei uma impressão muito forte dessas idas ao cinema. Daí que tivesse uma base sentimental para escrever o argumento de O Agente Secreto. O resultado é um quebra-cabeças que vem de histórias que ouvi contadas pela minha mãe, pelos meus tios e o meu pai... Sem esquecer que, desde muito criança, adorava ler os jornais, e não só pelo cinema (porque já era um jovem cinéfilo), também pela parte literária, ao domingo, e pela curiosidade mórbida de ver as fotos da página policial que, em boa verdade, eram muito mais francas do que são hoje. Lembro-me de ter ficado muito impressionado com a cobertura fotográfica do sequestro de Aldo Moro, em Itália. Hoje existe uma série de protocolos sobre como mostrar a vítima de um assassinato ou um atropelamento — naquela época, era tudo muito franco, como a foto que aparece no final do meu filme.Como é que tudo isso marcou o trabalho de “reconstituição” histórica?Tenho agora 56 anos. Quando envelhecemos, é como se conseguíssemos ver a história a acontecer à nossa frente. Isso vai desde a chegada de uma nova tecnologia, até ao uso do papel e ao facto de usarmos cada vez menos o papel. Ou ainda as mudanças políticas no meu país: a forma como hoje recuperámos um certo sentido de democracia, quando há dez anos estávamos num charco de autoritarismo... Vem daí uma base histórica para perceber o mundo, associado à experiência da minha própria cidade — sou do Recife e gosto muito do Recife. .Qual a importância da escolha do formato largo das imagens (uma variação do clássico CinemaScope)?Não terá sido uma escolha cartesiana que eu possa explicar... Por exemplo, uma escolha desse género foi feita em Parque Jurássico [1993], de Steven Spielberg, um belo filme de aventuras: o filme foi feito num determinado formato (o chamado 1x1.85) porque era nesse formato que os dinossauros “encaixavam” melhor — é uma boa explicação. Ora, não tenho uma explicação desse tipo para O Agente Secreto. É certo que o meu desejo de fotografar passaria sempre pelo formato anamórfico (1x2,40), ou seja, o Panavision. É um formato ligado à minha formação como cinéfilo e cineasta, sobretudo através de muitas produções dos anos 1970/80 que vinham dos EUA — filmes de John Carpenter, Brian De Palma e Robert Altman, ou ainda os Encontros Imediatos do Terceiro Grau, de Spielberg.E de onde vem Marcelo, a personagem de Wagner Moura, que afinal se chama Armando? Ou o Armando que responde pelo nome de Marcelo? Mesmo não conhecendo em pormenor a história do Brasil, dá para perceber que teve vivências de caráter político e, por isso mesmo, em plena ditadura, chega ao Recife para se esconder, dir-se-ia para se refugiar na sua própria cidade.Tudo começou com as histórias que os mais velhos me contaram e as muitas coisas que aconteceram ou poderiam ter acontecido. Acima de tudo, queria um herói clássico, de enorme empatia, grande carisma, que poderia ser interpretado por James Stewart — ou pensando em termos dos anos 70, por Jack Nicholson, como em Profissão: Repórter [Michelangelo Antonioni, 1975]. O Wagner é capaz de gerar essa empatia. Queria que o filme ilustrasse aquele ditado soviético: “Nunca uma boa ação ficará sem punição”. Tudo o que Marcelo fez está certo e correto, e ele vai pagar pelos seus pecados — é essa a lógica de uma ditadura. .O Agente Secreto é um quebra-cabeças que vem de histórias que ouvi contadas pela minha mãe, pelos meus tios e o meu pai.. Seja como for, um dos trunfos mais fortes do filme decorre do facto dessa empatia não poder ser reduzida a uma identificação política.Não, não pode. Mas hoje se você diz “eu acredito nas vacinas”, isso deveria ser apenas uma afirmação científica, baseada em pesquisas, mas pode ser transformado num discurso político. Alguém dirá “você é um liberal, é de esquerda” — mas não, “só quero que os meus filhos sejam vacinados”. A ideia de que a personagem está cheia de razão, sendo esse precisamente o seu problema, é algo que acho muito interessante num ambiente político autoritário.Como foi o trabalho de composição de Wagner Moura?Ele teve muito em conta algum paralelismo com O Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, uma peça que representou recentemente no Brasil [o mesmo espetáculo virá a Lisboa, ao CCB, em julho de 2026]. Queria que fosse, realmente, um herói clássico, embora diferente do herói clássico americano — ele não anda armado. Aliás, isso é discutido no filme — “Tem que andar armado, impõe respeito...” —, o que, além do mais, é uma questão que, nos últimos dez anos, voltou ao Brasil. .Tudo o que Marcelo (Wagner Moura) fez está certo e correto, e ele vai pagar pelos seus pecados — é essa a lógica de uma ditadura..Mas será que faz sentido dizer que o filme é uma metáfora do Brasil contemporâneo?Foi ingenuidade minha. Quando estava a escrever o argumento, pensei que o facto de a ação se passar em 1977 faria de imediato com que as pessoas “comprassem” a ideia de que era, realmente, em 1977… O certo é que a primeira vez que mostrei aos meus amigos, disseram logo: “Mas o filme é sobre hoje!” Um fracasso! [riso]. A questão é que voltaram ao Brasil algumas discussões arcaicas dos anos 1990/2000 — como brasileiro, isso choca-me muito.Pode dar um exemplo?Injúrias, discursos misóginos, homofóbicos, racistas e até preconceitos em relação ao Nordeste... . Essa capacidade de revisitar o passado, afinal fazendo-nos falar também do presente, pode ser encarada também como uma herança, não estética, mas simbólica, do Cinema Novo brasileiro?Não sei. Nos meus 20 anos, como jovem cinéfilo, aspirante a cineasta, irritava-me um pouco com a presença constante do Cinema Novo como uma espécie de “medida” para tudo o que se fazia no cinema brasileiro. Nos anos 90, quando eu estava a começar, qualquer coisa que se fizesse era colocada “contra” algum filme do Cinema Novo. Agora, quando se fala disso, acho que vejo uma beleza maior, tudo passou a ser visto com mais naturalidade. .Wagner Moura teve em conta algum paralelismo com O Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, uma peça que já representou no Brasil. Podemos, talvez, recordar a obra de Glauber Rocha, pensando, por exemplo, em António das Mortes [1969]: é um filme com uma dimensão política contaminada por muitas formas de misticismo. Ora, mesmo não esquecendo as muitas diferenças, talvez se possa dizer que também sentimos isso em O Agente Secreto.Sim, mas apenas porque, não sendo eu uma pessoa religiosa, acho incrível o suco de sentimentos não cartesianos que conduzem a vida no Brasil — por exemplo, há ateus que, no dia 31 de dezembro, se vestem todos de branco para passar o ano a dar pulos nas ondas do mar, em homenagem a Iemanjá... E não pertencem, obviamente, a um qualquer bando. É uma coisa nacional. Embora seja complicado e envolva outras questões, é quase como vestir a camisola amarela num jogo da seleção brasileira — vai além da ideia de patriota, funciona como um uniforme nacional. Veja-se a Dona Sebastiana [Tânia Maria]: ela recebe a personagem do Wagner com uma limpeza espiritual do apartamento — passou sal grosso, o apartamento está limpo. E não é limpo de poeira, é limpo espiritualmente. O Brasil possui uma força poética feita dessa mistura de sentimentos e espiritualidade. Afinal, queremos entender o que somos. Para mim, O Agente Secreto é muito sobre isso, sobre alguém que não tem a certeza daquilo que é...Nesse sentido, a personagem do Wagner não se esgota num discurso meramente militante.Não, é um facto. Trago comigo o suficiente para perceber que também faço parte disso, mesmo não perguntando como — para mim, isso é fascinante no Brasil. A minha companheira é francesa e sempre que, num restaurante, ela coloca a bolsa no chão, eu pego imediatamente nela e coloco-a numa cadeira. Não se pode colocar a bolsa no chão porque, no Brasil, significa azar — não me pergunte porque é que eu faço, mas eu faço..William A. Wellman: Quando o cinema era artesanal