Júlio Resende: "Explorador, sou eu"
O pianista lançou esta sexta-feira o seu novo álbum Cinderella Cyborg, onde o acústico encontra a eletrónica
Júlio Resende diz que todos temos várias casas, seja a casa natal, aquela onde vivemos ou a dos nossos amigos, e que em todas elas podem esperar encontrar-nos. Pois ele, pianista, está sempre numa casa mais à frente, onde não esperamos encontrá-lo, e todavia lá está ele, a habitar um lugar novo.
Quando o julgávamos no jazz, encontrámo-lo no fado, a tocar Amália ao piano. Fez-se fadista, com a voz nas teclas. Depois de Amália em 2013 veio Fado & Further, com a catalã Silvia Pérez Cruz. Depois a Poesia Homónima, com o seu piano e a voz do psiquiatra e sexólogo Júlio Machado Vaz. Por ambos ouvimos versos de Eugénio de Andrade e Gonçalo M Tavares.
O pianista produziu Excuse Me (2016), o primeiro álbum de Salvador Sobral, e integra desde então a sua banda. Sim, também toca de cor Amar Pelos Dois. Depois formou Alexander Search, banda de pop-rock eletrónico a que um heterónimo pessoano dá nome e que forma com Salvador Sobral, Joel Silva, Daniel Neto, e André Nascimento.
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Agora surge com Cinderella Cyborg, o seu novo álbum a solo. Nele juntou ao seu piano a música eletrónica, o computador, convocou o rapper e amigo Sam Azura, e até a voz de Peu Madureira aparece em Lisbonhood, cantando versos de Álvaro de Campos: "Eu amo todas as coisas (...) mas sempre mais as que estou vendo".
"Cyborg" é algo tecnológico que se acrescenta ou é introduzido num organismo biológico. O que é que neste caso foi introduzido e em que organismo?
Na verdade, não sei se foi a carne e o coração humano que se acrescentaram à música eletrónica se foi a música eletrónica que se acrescentou ao coração e à carne humana. Às vezes começo as canções por um beat, outras vezes por alguma coisa acústica. Mas independentemente de quem começa, era essa reunião que estava em causa. Essa reunião entre esses dois espíritos: o humano e o tecnológico.

O pianista Júlio Resende, que nesta sexta-feira lança o álbum Cinderella Cyborg
© Paulo Spranger / Global Imagens
É talvez difícil para quem está a ouvir não identificar o humano ou o Júlio Resende com o piano, porque é sobretudo daí que o conhecem.
Em grande medida. Alexander Search já inaugura outras possibilidades. Essa vai ser a coisa mais difícil que as pessoas vão ter de enfrentar: não ouvirem só o piano, ouvirem também outras coisas. Os últimos discos que eu fiz enquanto carreira a solo foram ou só piano ou piano e voz. Isto tem muito mais informação. Ao mesmo tempo, queria que fosse uma surpresa e mais uma face da minha música. É apenas uma coisa que me apeteceu agora fazer: conciliar estes mundos em luta, mas que eu acho que devem viver em maior harmonia, nem que seja harmonia musical.
Também para si viveram em conflito?
Não. Eu dou-me bem com a eletrónica. Ela não me incomoda porque aquilo tem um botão de on e off que eu desligo quando quero desligar. Mas ainda assim é preciso ter alguma iniciativa para que o mundo das máquinas não interfira no teu mundo humano. É difícil no âmbito social, com várias pessoas à mesa ou à conversa. É precisa uma grande educação. Eu próprio não a tenho e talvez este disco me ajude.
Porque é que Fado Cyborg é um fado? Pode sê-lo na medida em que, por exemplo, nos lembramos do coração sobretudo quando precisamos de pôr um pacemaker?
Eu senti a canção como um fado quando a estava a compor. E foi composta já a pensar naquele beat tão eletrónico. A canção apareceu-me assim, muito mais dolente do que o próprio beat. Eles contrapõem-se e ao mesmo tempo tentam ajudar-se e criar novas texturas. Sem grandes soberbas, ainda não ouvi aquela junção daquela maneira.
O que é sentir a canção como um fado?
A forma não só harmónica como melódica é bastante fadística. A forma como as frases aparecem faz parte dos cânones do que é o fado, de um ponto de vista musical. Depois acho que há um lirismo na canção que me remete para o fado. Podia ter outro nome, de outras coisas que combinassem duas texturas diferentes para criar uma nova textura. Gosto dessa imagem. Acho que Fado Cyborg promove essa ideia. Assim como Cinderella Cyborg [o nome do disco].
Cinderella evoca, outra vez, uma ideia ou uma história de transformação.
Sim. É uma história de um momento difícil que se transforma num momento bom. As máquinas também se transformam em qualquer coisa boa, como o pacemaker. Mesmo os telemóveis ajudam-nos bastante. Eu tenho acesso a toda a música num instante. Se isso não é bom não sei o que é.
Este álbum conta uma história?
Não há uma história. Há apenas uma ideia de criar uma relação benigna entre homem e máquina. Máquinas de paz em vez de máquinas de guerra, essa é a ideia.

O pianista Júlio Resende, que nesta sexta-feira lança o álbum Cinderella Cyborg
© Paulo Spranger / Global Imagens
Os temas são variações em torno de uma ideia?
Sim. Sentiste uma história?
Estava a pensar no Tema bonito para o Salvador, por ter sido pai. Essa também é uma transformação.
[O disco] Tem dedicatórias.
Nesse tema aparece a frase do Principezinho: "O essencial é invisível aos olhos."
Não foi ideia minha. Foi do Sam Azura, que também participa na parte da produção eletrónica dessa canção. Foi ele que pôs, por causa do meu filho. Foi uma bela ideia. Eu não sabia que a frase era assim tão conhecida e que era do Principezinho. Era perfeito.
Este disco pode ser ouvido como uma metamorfose sua?
Não é uma metamorfose. É mais uma faceta minha. Acho que não vou deixar de fazer mais discos a solo só com piano nem mais discos deste género. Não acho que vou deixar de fazer tudo o que me apetecer fazer, musicalmente falando. Por isso, é só mais uma porta de entrada, mais um lugar onde me podem ir conhecer. Ando a construir vários lugares onde vou. As pessoas também têm as suas casas: a sua casa natal, a casa onde moram, a dos seus primos, a dos seus amigos, que são casas suas também, lugares onde se pode encontrar essa pessoa. Há vários lugares onde eu me posso encontrar.
Mas não se sai incólume disto, não é? Estou a pensar no Amália por Júlio Resende. Nessa altura dizia que se sentia fadista.
Sim. Fica-se com uma bagagem. Aqui foi a combinação entre o mundo acústico e o mundo eletrónico. Essa combinação é o trabalho mais demorado. Do ponto de vista pianístico não foi preciso remodelar tudo. Em relação ao piano e ao fado, por exemplo, foi preciso remodelar quase tudo. Aqui não fui eu que fiz a parte eletrónica, dirigi-a. Aqueles sons não são pianísticos.
Mas ainda assim é a sua voz?
É a minha voz, sim. E agora fico ligado a este tipo de objeto, o que não me incomoda nada. Acho que terá um público diferente do que é o do Amália. Não estou muito preocupado com esse assunto.
Gostava de voltar à ideia de transformação implicada em "cyborg". Além de ter sido pai, este disco aparece depois do êxtase que se gerou em torno do Salvador Sobral, de cuja banda faz parte, de onde veio um novo ritmo de concertos, além do projeto Alexander Search.
Podia ser, mas tem tanto de metamorfose como já tinha o Amália. A isso acho piada, esse tipo de metamorfose. Acho piada a corromper, quebrar, transgredir, rever.
Romper?
É um termo negativo. Não é para ser agressivo, é para tentar não me aborrecer de mim mesmo.
Aborrece-se?
Aborreço-me muito de mim mesmo, claro. Tento não me aborrecer, e crescer em várias direções. Este gesto é mais uma tentativa de remodelação, frescura, de alguma menos óbvia. Isso é procurado, é um autodesafio.
Com o fado foi a mesma coisa?
Sim. Com praticamente todos os gestos. Nos discos de jazz também.
Como um explorador perante um mapa? A ver o que há por descobrir?
Explorador, sou eu. Acho que sou um explorador esteticamente falando. E um improvisador é um explorador só por si. Mas há muito a fazer. Não fiz grande coisa ate agora. Mas tenho tentado.
É fácil manter a voz própria quando se toca tanto no projeto de outra pessoa, como acontece com o Salvador Sobral?
O grupo entende-se muito bem. Uma das coisas que me mantêm nele é todo o espaço que o Salvador me dá para eu fazer aquilo que quiser. É por isso que a malta se mantém junta. Por essa liberdade. Sinto-me muito bem ali.