Júlio Pomar
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Júlio Pomar: O pintor que amava a poesia e os fadistas

Artista plástico de enorme importância ao longo das últimas décadas, Júlio Pomar foi um espírito inquieto, que saltou alegremente muros entre artes e disciplinas. Hoje, dia 14, na Fundação que tem o seu o nome, o foco estará na sua poesia e nos fados que também escreveu.
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Ao longo de uma carreira de décadas, o pintor Júlio Pomar (1926-2018) manteve relação fiel e verdadeira com a Literatura. Encontramos desenhos e pinturas suas a enriquecer, mais do que a ilustrar, edições de Cervantes, Samuel Beckett, Maria Velho da Costa, Fernando Pessoa, José Cardoso Pires, entre muitos outros, e vemos os seus retratos de Pessoa inscritos nas paredes do metro do Alto dos Moínhos, em Lisboa. O que não soubemos durante muito tempo é que o artista também escrevia poesia e fados em nome próprio. Para o lembrar, a Fundação Júlio Pomar, que comemora este ano o décimo aniversário de atividade, apresenta este domingo, na Casa-Museu (Rua do Vale, 7, em Lisboa), às 16.30, a obra Prima Contradição, com apresentação de Rui Vieira Nery, Golgona Anghel e Óscar Faria e leitura de poemas pela atriz Lia Gama. 

Publicado em Novembro passado pela Assírio & Alvim, este livro conta com um preâmbulo do amigo do autor, António Lobo Antunes, e organização de José Alberto Oliveira e José António Oliveira, que, em nota explicativa do volume, esclarecem que Pomar nos deixou " um espólio de milhares de poemas, alguns concebidos como letras de fados (e destes, vários já musicados), muitos aparentemente inacabados, ou constando de variações sobre o mesmo tema, sem indicação de preferência entre variantes». Para Pomar, homem de muitas afinidades eletivas, o impulso criativo era, antes de qualquer outra coisa, movido por afectos, como revela na abertura da sua Autobiografia (edição Assírio& Alvim, 2004): "Não vive a arte senão de afectos: Os afectos é que compõem o ar que a arte respira, o corpo que ela insemina, a razão do seu pensar.”

O artista, celebrizado desde os anos 40 por obras como "O Gadanheiro" ou "O Almoço do Trolha",  estreou-se na publicação de poesia com o livro Alguns Eventos (1992), seguindo-se, onze anos volvidos, Tratado do Dito e Feito (2003), que incluía já um texto de António Lobo Antunes intitulado “Apontar com o dedo o centro da terra”, onde o escritor fala desta forma sobre o trabalho artístico do amigo: “Júlio Pomar abre cofres que não há. Ou seja, é a mão que inventa o cofre e, antes do giro da porta blindada, percebemos quando muito, o estalinho do segredo que cede: um estalinho, dois estalidos, dez estalidos. Então a mão puxa brandamente e do interior salta, intacta, uma festa dos sentidos e da inteligência.”

Neste Tratado do dito e do feito, Pomar reúne um conjunto de poemas em que o foco está nos gestos do seu trabalho artístico, mas também na sua relação com as palavras, como escreve no poema “Mais notas explicativas”: “As palavras são das coisas/que menos se gastam, como as chaves/e certas armas ou rudes ferramentas antigas./Não assim a carne/ que usada ao vivo entra em chaga/ e quem acha que não nasceu para sofrer diz basta/e com variável custo roda o leme e vai voltando ao recurso da imagem”. Na já citada Autobiografia, publicou também vários textos seus, em poesia e prosa, incluindo o poema “Assim Trabalho Eu”, que termina desta forma: “Eu digo que a dúvida era o pão diário do jogo de certezas em que Mondrian apostava/como qualquer mortal/e à livre imitação destas/se inventaram os deuses.”

Da poesia à escrita de fados foi um passo para este artista que também pintou retratos de fadistas como Carlos do Carmo ou Cristina Branco e associou uma guitarra portuguesa a uma evocação de Mário de Sá-Carneiro, Santa Rita pintor e Amadeo de Souza Cardoso, no quadro “Lusitânia no Bairro Latino”. Esta relação foi, aliás, tão intensa que, em 2015, justificou a realização de uma exposição  específica no Museu do Fado. Mais recentemente, o mesmo museu voltaria a Pomar para a edição de um CD com dez fados por ele escritos, que abre com “Fado do 112”, gravado por Carlos do Carmo, seguindo-se outros temas nas vozes de Camané, Carminho, Ricardo Ribeiro, Pedro Jóia, Cristina Branco, Aldina Duarte, Ana Sofia Varela e participações de António Vitorino de Almeida, Pedro Caldeira Cabral, entre outros.

Nascido a 10 de janeiro de 1926, na rua das Janelas Verdes, em Lisboa, Júlio Pomar frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e inscreveu-se aos 16 anos na ESBAL. A primeira exposição, juntamente com Vespeira, Azevedo e Pedro Oom, foi realizada num atelier da rua das Flores, e foi, logo nessa estreia, que Almada Negreiros lhe comprou o quadro Saltimbancos.  Militante anti-fascista, esteve preso em Caxias, onde conheceu Mário Soares, que retrataria pela primeira vez na cela da prisão, sem imaginarem ambos que, muitos anos depois, seria ele a assinar o retrato oficial de Soares como Presidente da República.

Em 1961 ganhou o prémio de Pintura da Fundação Gulbenkian e começou o ciclo das Tauromaquias. Partiu para Paris em 1962 como bolseiro da Gulbenkian e dois anos depois fez a sua primeira exposição individual na capital francesa. Participou em inúmeros certames internacionais, nos Estados Unidos e no Japão.


Depois da série dos Tigres, do início dos anos 80, iniciou uma reflexão sobre figuras da História portuguesa: Fernando Pessoa, Luís de Camões, Mário de Sá-Carneiro, Fernão Mendes Pinto.

Nos anos 90 Júlio Pomar repartiu o seu tempo entre Paris e Lisboa. A galeria Piltzer, na exposição "Les Joies de Vivre", patente ao público em Paris de 12 de dezembro de 1997 a 29 de janeiro de 1998, apresentou 6 trípticos e 2 quadrípticos em que os temas mitológicos, a personagem de D. Quixote ou o percurso do artista por terras brasileiras serviam de pretexto para a exaltação do prazer dos sentidos. Em 2004, foi condecorado pelo então Presidente da República Jorge Sampaio com a Ordem da Liberdade. Morreu em Lisboa a 22 de Maio de 2018, deixando aos vindouros um legado de lúdica inquietação. Como questionava num dos inúmeros versos que escreveu: "Para que servem os muros que nos cercam senão para nos dar ganas de os saltar?"

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