Chamam-lhe o Antes do Amanhecer finlandês, porque retrata o encontro num comboio entre um rapaz e uma rapariga de diferentes nacionalidades. Mas as semelhanças com o filme de Richard Linklater ficam-se por aí. Compartimento nº 6, título que se segue a O Dia Mais Feliz na Vida de Olli Mäki (2016), é a prova de que na Finlândia ainda há realizadores capazes de evocar um humanismo à Aki Kaurismäki. Algo que não tem que ver com a superfície visual dos filmes mas com uma atenção às personagens. No caso, uma jovem finlandesa, Laura (Seidi Haarla), estudante de Arqueologia, e um jovem russo, Ljoha (Yuriy Borisov), que parece ter um mestrado em bebidas alcoólicas... Os dois partilham o minúsculo compartimento de um comboio que segue de Moscovo para Murmansk, e o que entre eles começa com o pé errado acaba por se ir configurando numa relação, digamos, não propriamente romântica. A Juho Kuosmanen interessa o vínculo entre dois seres que está para além da conquista amorosa. É um lugar melancólico bem lá no fundo, envolto de um longo inverno e filmado com uma ternura discreta. Um filme que assume a simplicidade e a suspensão temporal como vias para aceder àquele "sentimento de revisitar velhos diários", como nos disse o realizador..O comboio é o lugar certo para contemplar a solidão? É. Porque, no fundo, é um não-lugar. Não se compara a um autocarro, a um automóvel ou a um avião, onde as pessoas se sentam só à espera de chegar ao destino. Nestes comboios de longo curso, mais lentos, as pessoas estão a passar o seu tempo, o que implica que já seja uma espécie de lugar, mas não pertence a ninguém. E penso que é um espaço muito propício a este tipo de encontros porque toda a gente está na mesma situação... no mesmo comboio. Depois, quando estamos num comboio como passageiros isolados, estamos a enfrentar a solidão, estamos desligados do nosso meio - e é também por isso que não quis situar o filme no presente, mas sim algures no passado, quando não havia as facilidades de comunicação que hoje existem. De resto, a solidão é uma parte importante do filme, representa aquilo que de alguma forma liga as duas personagens... Há aquela famosa frase do início de Anna Karenina, que diz "todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira", e acho que no caso de Ljoha e Laura, contradizendo Tolstoi, eles estão infelizes de um modo muito idêntico..Referiu um dos aspetos essenciais de Compartimento nº 6: a sensação de se estar "algures no passado", onde não há smartphones nem sequer telemóveis. Quase como se o próprio espetador se pudesse abandonar a uma nostalgia imprecisa. Porque é que optou por ocultar a referência temporal? Por um lado, o filme é inspirado no romance homónimo de Rosa Liksom, que se passa nos anos 1980, na União Soviética, e ao escrevermos o argumento, quando estávamos à procura dos espaços, comecei a calcular as coisas e não me fazia sentido situar a história nos anos 1980, porque o que quer que as personagens dissessem ia ser enquadrado no contexto da União Soviética. Eu queria focar-me apenas nestas personagens. O mesmo se aplica aos anos 1990... Não queria que os espetadores desviassem o pensamento para as questões do contexto político, porque seria distrativo para o teor frágil do filme, que é apenas o contacto entre duas pessoas. Por outro lado, queria que funcionasse como uma espécie de memória, qualquer coisa que aconteceu há algum tempo, mas sem que se tenha uma ideia precisa da data. É por isso que há música dos anos 1970, 80 e 90, para ter diversas camadas que apontam para um passado indefinido, um "algures" no tempo. É aquele sentimento de revisitar velhos diários..Isso leva-me a perguntar se, à semelhança de Laura, também "gosta de coisas velhas", como diz o Ljoha... Não tinha pensado nisso, mas gosto muito de coisas velhas! É um facto. Em parte é uma questão estética. Por exemplo, gosto de prédios antigos, carros antigos, etc., porque não têm o lado de "eficiência" dos dias de hoje, em que tudo é barato e rápido - isso tornou-se mais importante do que criar algo belo. Sou uma pessoa nostálgica, de certa maneira, mas não no sentido da ideia conservadora de que dantes tudo era melhor. A propósito, li um artigo na The New Yorker [The True Meaning of Nostalgia] que fala disso, da nostalgia, e revejo-me muito no conceito da "consciência da ligação perdida"..A personagem masculina, o Ljoha, começa por simbolizar uma certa virilidade russa. E também em O Dia Mais Feliz na Vida de Olli Mäki a personagem do boxeur era suposto ser o típico homem do ringue, embora o filme o capte como um homem enamorado, "fragilizado". Podemos dizer que ambos os filmes desconstroem o tradicional herói masculino? É um bom ponto, sem dúvida. Olli Mäki está a tentar sentir esse papel do boxeur, e sim, o jovem russo, no início, também está dentro do papel típico do homem russo. São papéis atrás dos quais as pessoas se escondem para não serem elas próprias. E neste filme a ideia foi começar com esse género de papéis claros em relação aos dois - Ljoha, o "indivíduo russo", e Laura, a "estudante finlandesa" -, porque estes papéis são a razão de as pessoas estarem tão desconectadas, tão distantes. Têm medo de mostrar quem realmente são..Esse receio é notório. Mas a verdade é que eles depois parecem crianças: riem, brincam, amuam... Como é que aconteceu este perfeito par de atores? Estou muito feliz por os ter encontrado, foi crucial. É curioso porque, no argumento, o indivíduo russo era muito mais velho, tal como no romance. Chegámos a encontrar grandes atores russos, mas nunca aquele capaz de fazer esse par perfeito. O Yuriy [Borisov] começou por ser só uma intuição. Mas quando os vi juntos [Borisov e Seidi Haarla], pensei "este é o filme que quero fazer", não é o que está no argumento, é o que aqueles dois me permitem expressar. É difícil explicar... Digamos que eles pareciam irmãos - não por semelhanças físicas mas por uma sensação palpável. E aí percebi que esta história não era sobre personagens diferentes mas sobre "gémeos" que desconhecem a existência um do outro, muito mais do que a ideia de um casal. Isso foi ainda mais importante, porque não queria fazer um filme romântico. Na conexão entre eles não há interesse sexual, não há alguém a tentar encontrar uma maneira de conquistar o outro. O que eles partilham é mais profundo, é uma desilusão com as pessoas, o sentimento de que a vida é injusta. Eles realmente compreendem-se por aí..Não deixa de ser um filme romântico, noutro tom... Sim, até brincámos com isso: uma comédia romântica finlandesa que não é bem romântica nem cómica. Mas é como disse, a relação deles parece algo anterior à puberdade, ao despertar da sexualidade.