Juan del Val. "A literatura está cheia de fracassos de autores que aparecem na televisão"

É o típico livro de férias! Tudo acontece num condomínio de luxo e a ação passa de um casal para outro, abrindo as janelas das vidas escondidas que estes levam nas residências reservadas apenas para alguns. No entanto, as histórias daquelas personagens não diferem assim tanto das das restantes pessoas, mesmo que fora de vista e protegidas pelos muros que isolam os ricos das ruas.
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O autor espanhol Juan de Val quer ser definido como escritor - até já ganhou um prémio literário com o seu romance Candela, mas é mais conhecido como estrela da televisão do seu país e casado com uma outra estrela do pequeno ecrã. A sua biografia não foge a um percurso especial: ter sido trabalhador na construção civil. Só depois desta "revelação" é que se encaminha para a escrita: foi jornalista, realizador e apresentador. Atualmente, diz-se argumentista. Os livros não param de ser publicados e esta é a sua quinta narrativa.

Como a capa de Delparaíso demonstra, Juan del Val tem um especial interesse em personagens femininas, que fazem lembrar figuras da sociedade espanhola, algumas perfeitamente identificáveis, como é Maite, uma das muitas alegadas ex-amantes do rei emérito Juan Carlos. Pergunta-se se recriá-la já não é um escândalo em Espanha nos tempos que correm, e a resposta é direta: "Não estou preocupado se é ou não um escândalo no momento de escrever, nunca penso nisso. Acredito que se os escritores pensarem nas repercussões do que escrevem, serão sempre piores escritores. Achei interessante incluir uma personagem como Maite na trama e assim fiz, não me importa se é polémico ou não."

O registo literário de Juan del Val faz lembrar outros de há umas décadas, como o de Bret Easton Ellis em Menos que Zero (1985) ou as Regras da Atração (1987), no qual usa a geografia de Espanha em vez da da Califórnia -- Los Angeles, principalmente --, sem ignorar a realidade complexa dos casais em relações envenenadas e que vivem acima das suas possibilidades. Ao contrário do escritor norte-americano atrás referido, as mulheres são as principais personagens. "É bastante recorrente nos meus romances. Tenho mais facilidade em escrever sobre mulheres do que sobre homens, mas este romance tem homens bastante interessantes também e personagens masculinos poderosos. É verdade que sempre tive, e acho que terei, um fascínio por mulheres, e isso transparece ao escrever", refere.

Ao contrário do que o título afirma, Delparaíso, este romance conta o "Delinferno" da maioria dos moradores de um condomínio de luxo. Qual foi a sua intenção?
Acredito que por trás do paraíso existe muitas vezes o inferno. Ou seja, acho que não existem paraísos e que essa vida idílica que aparentemente haveria na urbanização Delparaíso não é real.

Foi necessário fazer uma grande investigação para reproduzir o cenário desta novela?
A investigação não foi muito difícil. Sou um autor que, basicamente, escreve sobre o que vive, o que vê e o que sabe. Conheço bem condomínios como será este Delparaíso, também algumas das pessoas que moram lá e, de certa forma, sei perfeitamente como se estruturam esses tipos de vivências.

Utiliza histórias de vida que lembram pessoas verdadeiras. A da "amante" do monarca não dava até para um livro inteiro?
Não é só a de Maite, vários dos restantes personagens também caberiam num livro só seu, sem dúvida. Acho que quase todas as pessoas têm uma história que preenche um romance, no entanto, em Delparaíso fui obrigado a ficar com a essência de cada um devido ao que queria do livro.

Delparaíso foi um best-seller em Espanha. O jet set espanhol e os segredos dessas famílias atraem o leitor?
Nunca se sabe a razão por que um livro se transforma num best-seller. A verdade é que não terá a ver com uma única situação, mas com muitas. Além de Delparaíso poder atrair o jet set espanhol devido ao tema dos segredos de família, o sucesso terá sido mais devido à facilidade com que o leitor se identifica rapidamente com os personagens. Deve estar aí o segredo do sucesso de vendas. De qualquer forma, se alguém soubesse os ingredientes dos best-sellers, todos os livros seriam assim. Ninguém tem essa fórmula, felizmente, daí que desconheça por que foi um romance tão bem-sucedido.

A infelicidade é um dos temas principais. Reflete a realidade de muitos espanhóis?
Não acho que os espanhóis sejam especialmente infelizes, ou mais ou menos que os portugueses, alemães ou suecos. Acho que a felicidade é algo muito difícil e há sempre uma certa insatisfação em cada um de nós, e é disso que o romance fala. Contudo, não quero refletir a realidade de uma insatisfação ou infelicidade dos espanhóis, longe disso.

É mais fácil seduzir o leitor com os ricos do que com a classe média?
Bem, Delparaíso não é um romance para ricos; ele fala de pessoas que estão muito bem financeiramente, mas há também a classe média, através de outros personagens, os do banco ou do pessoal de segurança, e há classes mais desfavorecidas, como os trabalhadores romenos que realizam as obras. Não é um romance para ricos, essa não é a chave para entender Delparaíso.

A imagem que dá destes ricos é a de não terem muita consciência social. É a verdade?
Não creio que não tenham consciência social. Em todo o caso, este romance não pretende ser uma denúncia social. Pode parecer que ao lidar com pessoas mais favorecidas economicamente do que outras o vejam dessa maneira, mas não é o que pretendo. Não sou um autor que denuncia ou julga, apenas procuro olhar a realidade e, a partir daí, deixo cada um tirar as suas conclusões. A pessoa com menos consciência social do romance é, sem dúvida, Pascual, e não é exatamente da classe alta.

Há muito sexo. É um truque literário?
Não gosto da palavra truque, principalmente quando falo de sexo. Há sexo neste romance como em todos os que escrevo, mas não é algo gratuito. Para mim, o sexo dá muitas informações sobre os personagens: desejo e não desejo, sexo e não sexo... Essa parte dá explicações muito valiosas sobre como são os personagens e, sobretudo, sobre o momento em que estão. Se alguém não tem desejo, isso deve ser dito, pois explica o momento que a pessoa vivencia -- é como se um personagem não tivesse um emprego. Eu falo disso porque o personagem tem um problema e desse modo demonstro a situação em que se encontra. Não é gratuito e, muito menos, um truque literário. Não gosto de usar truques literários.

Foi uma novela escrita antes da pandemia. O confinamento teria facilitado a descrição do isolamento por que os personagens lutam?
Escrevi parte do romance antes da pandemia e outra depois. Quando não escrevi, foi justamente durante a pandemia, porque a realidade deixou-me muito triste e não me senti bem o suficiente para me sentar a escrever. Há algum isolamento nesses personagens que vivem em Delparaíso, cercados por câmaras de segurança e muros, e pode haver algum paralelismo com a pandemia, mas no momento em que escrevi não tinha esse objetivo e estava insatisfeito com uma situação tão trágica por que o mundo inteiro estava a passar.

Apesar de tanta segurança, acontece um crime. Foi complicado encontrar a solução?
Não me defino como um autor de personagens, antes de as tramas serem sempre uma desculpa para falar sobre os que entram no romance. Pareceu-me que um crime explicaria muito bem o momento que certas pessoas atravessam no livro e que retrata relações familiares muitas vezes extremamente complexas.

Delparaíso faz lembrar uma série de TV. É outra forma de cativar o leitor?
Tenho um ritmo próprio enquanto escrevo, provavelmente semelhante ao de um argumento. Talvez tenha a ver com uma deformação profissional devido ao meu trabalho como guionista. De qualquer modo, será feita uma série de televisão de Delparaíso para a HBO Max e estou muito feliz com isso. No entanto, reivindico que é um romance e não um roteiro, mesmo que resulte de um ritmo de escrita que muitas vezes me dizem poder assemelhar-se a imagens de uma série.

Sendo autor há poucos anos, dá a ler o que escreve a alguém ou sente confiança suficiente?
Não tão poucos anos assim, já são cinco romances e estou a trabalhar no sexto. Contudo, gosto de ouvir a opinião do meu editor ou da minha mulher, pessoas em que confio e que estão sempre interessadas em ler e dizer se estou no caminho certo. Escuto muito as opiniões, claro que, como autor, faço depois o que quero. Diria que não é por insegurança, mas porque, como dizem as mães, quatro olhos sempre veem mais do que dois.

Aparecer na televisão ajuda a vender livros?
Sim, ajuda a vender livros porque, obviamente, as pessoas sabem quem fez o trabalho, mas isso dura uma semana ou duas. Então chega a hora de o romance ter de se sustentar sozinho e o boca a boca torna-se extremamente importante na literatura. Repito, ninguém tem o segredo para as grandes vendas e se se cola esse rótulo a quem aparece na televisão então qualquer um que aparecesse na televisão faria um romance que venderia muito -- e não é o que acontece. A literatura está cheia de fracassos retumbantes de autores que aparecem na televisão, portanto essa não é a solução. É, contudo, indiscutível que é importante essa oportunidade para dar a conhecer o nosso trabalho, mas o mais importante é, sem dúvida, que o romance seja bom, simpático e interessante.

Recebeu o prémio Primavera de Novela 2019 com o seu segundo romance. Esperava esse reconhecimento?
Um prémio nunca é esperado. Quando o recebi, fiquei muito surpreso e deu-me uma grande satisfação. Também é bom porque implica reconhecer que se está no caminho certo e que se pode ser levado a sério como autor. Para mim, esse prémio foi tão importante como vital.

No primeiro livro escreve na primeira pessoa. Neste é o narrador. Qual é a forma de escrever que prefere?
Tudo o que tinha escrito anteriormente a Delparaíso estava no presente e na primeira pessoa. Não prefiro uma forma ou outra. A primeira pessoa tem vantagens quando se trata da emoção e por ser mais fácil a identificação com o personagem, mas a terceira pessoa, embora mais distante, também permite descrever as situações de uma forma eficaz. Dependendo de como surge e das necessidades da história, opto por uma ou outra. No caso deste romance, a terceira pessoa era necessária.

O título Delparaíso tem a ver com o "del" do seu nome?
Na verdade, sim. Há muitas coisas chamadas Valparaíso ou parecidas, daí que tenha pegado no "del", a primeira parte do meu apelido, e tenha juntado a paraíso. Pareceu-me um título muito apropriado para dar nome à urbanização.

Mandem Saudades

Mário Augusto

Edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos

129 páginas

Mário Augusto decidiu contar uma história de emigração portuguesa e, para surpresa do leitor, encontrou-a no Havai. Habituados a vê-lo a falar sobre cinema, há um momento de espanto quando se lê o seu nome na capa de uma narrativa intitulada Mandem Saudades, onde se conta como milhares de portugueses abandonaram as terras onde nasceram e se tornaram, através da lusodescendência, 10% da população daquele país no oceano Pacífico.

Partiram com a promessa de que havia trabalho e desconheciam o destino proposto pelos que recrutavam a mão de obra tão necessária em terras afastadas, das secas e da fome crónicas. O autor andou a recolher memórias bastante antigas por vários lugares, desde Serpa a Mogadouro, bem como as daqueles que partiram e as saudades fizeram voltar anos depois. Encontra uma "havaiana de Trás-os-Montes", sabe da morte de Maria da América, é salvo pelo testemunho de Domingos Havaiano, que nasceu em Honolulu, escuta Xico Manhoso, e assim vai reconstituindo a história que deseja contar, até com a colaboração das fotografias do grande Joshua Benoliel, desvarios apocalípticos sobre o país em crise escritos por Eça de Queiroz, que empurravam portugueses para "uma emigração desgovernada e crescente".

Mário Augusto não se fica por Portugal e recolhe depoimentos no Havai e na Califórnia que completam a sua longínqua história, durante a qual se recordam quase naufrágios e outras aventuras dramáticas, incomparáveis com as más condições de trabalho no cortar da cana-de-açúcar que faziam alguns ansiar pelo regresso e a muitos ficar por lá, sendo que ambas as partes vão surgindo nestas páginas. Até relatos de apropriação musical, como do cavaquinho transformado em ukelele e dos fados cantados sem se perceber o português. Enfim, uma história que se lê de uma vez em tempos em que a imigração é questão quente na Assembleia da República.

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