Ainda a entrevista não tinha começado e já uma fã, de pouco mais de 20 anos pela certa, se aproximava de José Cid para lhe pedir uma selfie. “Gosto muito e os meus pais também, mas eles são mais envergonhados”, esclareceu, enquanto apontava para o casal que a esperava, uns metros mais à frente, no hall do Centro Cultural de Belém. Joana, assim se chama a jovem, protagonizou a abordagem mais afoita da manhã, mas não faltaram os olhares curiosos e atentos de todos os portugueses que se foram cruzando connosco, independentemente da idade ou gosto musical. Afinal, há, pelo menos, uma canção de José Cid na banda sonora íntima de cada um de nós, desde A Balada para Dona Inês, ainda dos anos 60, aos temas do novo disco, que nos conduz à entrevista, sem esquecer (como fazê-lo?) O dia em que o Rei fez anos, O meu piano, A Rosa que te dei, Nasci para a música ou Um grande, grande amor, que o levou, com enorme sucesso, ao palco da Eurovisão, em 1980, entre tantas outras..“Sou muito camaleão, mudo muito de género, só não canto fado de Coimbra porque é preciso ter voz de tenorino” diz-nos o músico, que assim introduz o novo álbum, Depois logo se vê, composto por 17 temas, todos muito diferentes entre si, tanto do ponto de vista temático, como melódico: “Em 2020, quando fiz o meu disco de rock sinfónico, Vozes do Além, decidi que aquele seria o meu derradeiro álbum. Foi um triplo vinil, que rapidamente se tornou o disco mais vendido em Portugal, mesmo sem grandes campanhas de promoção. Mas, de repente, voltei a escrever músicas e tinha uns duetos que já estavam programados, dois deles com os irmãos Salomé, o Vitorino e o Janita. Porque é que não podia voltar atrás na minha decisão?” E voltou, acompanhado não apenas pelos Salomé, mas também por um grupo de cúmplices que incluem Mário Mata, Jorge Benvinda, a filha Ana Sofia Cid, a enteada, a cantora lírica Jéssica Carrascalão ou o coro de alunos da Escola de Artes da Bairrada..José CidFOTO: Leonardo Negrão.“É verdade que este álbum me deu uma trabalheira, mas compreendi que não tenho de parar só porque estou mais velho. Decidi que hei de parar quando não tiver voz”, diz-nos. A Joana, com que abrimos esta conversa, não é caso raro e a prova disso mesmo é que a agenda de concertos para o próximo ano já está muito preenchida: “Tenho um público jovem, que gosta de rockalhadas, novas e antigas, mas também vibra bastante com a música popular portuguesa. O que é ótimo porque somos um país com um património musical muito rico.” José Cid, senhor de uma erudição musical muito vasta, deixa, no entanto, uma advertência: “Não aceitem que se confunda música popular com música brejeira e pimba. Temos bons exemplos de música popular, desde o Conjunto Maria Albertina aos Diabo na Cruz, passando pelo Conjunto António Mafra ou a Brigada Vítor Jara. Sou fã de um grupo novo, que é o Miss Universo, é muito bom. O resto é outra coisa, serve para as pessoas ganharem a vida, mas não é música popular.”.Cantor de intervenção.Com este novo álbum, Cid volta também aos temas de intervenção, como são Aljube e De Ditadores está o Inferno Cheio, que nascem “desta perplexidade, que é ver os ditadores a voltarem à cena política, infiltrando-se no sistema democrático.” Um registo que causará estranheza aos mais novos e aos mais desmemoriados porque, afinal, já havia um José Cid a desafiar a censura na última década da ditadura: “Fui posto de lado depois do 25 de Abril, por um lado, porque era e sou monárquico, mas, sobretudo porque era demasiado popular para ser um membro do canto livre, embora eu tivesse 28 canções censuradas no antigo regime.” .Cid acredita ainda que, nessa classificação, pesaram ainda as inimizades pessoais no clima efervescente pós-revolucionário: “Fui boicotado pelo lobby do Ary dos Santos, que não suportava que não cantasse as canções dele, embora eu lhe explicasse que compunha as minhas próprias canções. Eu era muito mais próximo da Natália Correia. Gravei muitos temas dela, alguns inéditos, como História Verdadeira do Natal e, em 2018, dediquei-lhe uma canção intitulada Saudades do Botequim (à memória de Natália Correia).”.Para a história da relação de Cid com a ditadura em prolongado estertor, fica ainda a canção O dia em que o rei fez anos, que, integrado nos Green Windows, levou ao Festival RTP da Canção de 1974, o tal ganho por Paulo de Carvalho com E Depois do Adeus: “A nossa canção conta a história do povo que invade a cidade, com as portas a abrirem-se de par em par, e foi cantada no Festival um mês antes do 25 de Abril. Lembro-me que o ambiente era já de tal ordem, que o Carlos Cruz veio ter connosco e disse que não ia haver festival porque o Marcelo iria anunciar a sua demissão, o que, como sabemos, não chegou a acontecer. O José Niza dir-me-ia que aquela canção era uma autêntica profecia do que pouco depois veio a acontecer.”.A resistência de José Cid ao regime começou ainda na Universidade de Coimbra, para onde fora estudar Direito e onde começou a destacar-se na música, no Orfeon Académico. Aí teve como colega e companheiro de todas as horas o cantautor Adriano Correia de Oliveira (1942-1982): “Não acabámos o curso, mas vivíamos muito. Estivemos juntos, por exemplo, nas barricadas contra as cargas da GNR sobre os estudantes. Lembro-me de esfregarmos a calçada com sabão macaco para os cavalos dos GNR escorregarem. E nós, cá em cima, a gozarmos o panorama.” Mais tarde, ambos cumpriram o serviço militar em Mafra, onde Cid ouviu Adriano cantar, pela primeira vez, Lira: “Foi pura e simplesmente arrepiante. Era um grande amigo, um génio musical e um homem de imensa coragem política.” Os últimos anos da Ditadura e a primeira década de Democracia consagraram José Cid como uma “estrela” da música portuguesa, com as participações nos festivais RTP da canção a serem, como reconhece, “uma excelente montra do nosso trabalho.” Começou ainda muito jovem, em 1968, com Balada para Dona Inês (que ficou em terceiro lugar) e teve o seu ponto alto em 1980, quando levou à Eurovisão Um grande, grande amor, que ficou em 7º lugar, em 19 participantes: “Éramos os favoritos, mas nem sequer podíamos ganhar porque a RTP não tinha dinheiro, nem espaço para organizar a gala do ano seguinte.” .José CidFOTO: Leonardo Negrão.Ainda assim, o aplauso de público e crítica foi unânime e a noite da Eurovisão acabou na festa dada pelo vencedor, o irlandês Johnny Logan: “Passámos a noite a tocar rock’n’roll. O Zé Nabo tocava baixo, o Mike Sargent guitarra, o Ramon Galarza estava na bateria e eu nas teclas. Foi muito divertido.”.Os músicos portugueses esquecidos. O que continua a incomodar o músico é o esquecimento a que, em seu entender, são votados muitos artistas portugueses: “O Fausto morreu amargurado porque não passava nas rádios. E, no entanto, era um génio, mas ainda ponho o Zeca Afonso num patamar superior. Para mim, era simplesmente o melhor compositor mundial da sua geração. A voz dele era linda, a dicção era incrível, não cantava pelo nariz como o Bob Dylan. E, no entanto, quando é que ouvimos a música dele nas rádios portuguesas? Por altura do 25 de Abril e depois para.” Nesta lista de “esquecidos”, Cid inclui alguns nomes de artistas vivos: “O Janita é uma grande voz étnica, a maior a seguir ao Adriano Correia de Oliveira, e pouco passa, o mesmo acontece com o irmão, o Vitorino, o Paulo Carvalho, o Jorge Palma e o Mário Mata, que continua a compor ao mais alto nível e de que não se fala.” E acrescenta, perentório: “Repare, eu não contesto a música boa estrangeira que passa na rádio, contesto é a má que passa em detrimento dos artistas portugueses.” Aos 82 anos, com a voz intacta, Cid orgulha-se de “ser um resistente”, que, nesta fase da vida, compete apenas com ele próprio. E continua a retirar imenso prazer dos concertos ao vivo: “Até adoro as viagens que faço com os músicos, de e para os espetáculos. Nunca me canso do público, quero é transmitir-lhes alegria e prazer. Farto-me de fazer concertos, até fizemos, o Mário Mata e eu, uma série deles para angariar dinheiro para os bombeiros, que bem precisam.” Este ano terminará, aliás, com o concerto seu, em Lisboa, em lugar que ainda não quis revelar. O segredo de tamanha longevidade artística? A convicção de que, como anunciava numa velha canção, “nasceu para a música” e alguns cuidados pessoais, que “receita” aos mais novos: “Meninos e meninas, não fumem, não bebam, não apanhem gripalhadas, não cantem por cima das gripalhadas, durmam muito, façam como o tio Zé.”