John Cleese, antes de morrer

Será, provavelmente, a última oportunidade para o ver. O eterno Monty Python e protagonista de <em>Fawlty Towers</em> vem ao Coliseu de Lisboa apresentar o espetáculo que intitula como a sua derradeira performance. A morte, de resto, sempre fez parte desta vida humorística, desde a rábula do papagaio à "piada mais engraçada do mundo".
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Era para ter acontecido em maio de 2020. Meteu-se a pandemia, foi reagendado para junho de 2021, mas como não há duas sem três, adiou-se para junho de 2022. E cá estamos: John Cleese vem atuar pela primeira (e última?) vez em Portugal esta sexta-feira. Fica por cá até dia 9, para já, com três sessões esgotadas. O espetáculo Last Time to See Me Before I Die [Última Oportunidade Para Me Ver Antes de Eu Morrer] chega assim ao Coliseu de Lisboa como uma celebração final, mas não fúnebre, depois da digressão de 2009 intitulada A Ludicrous Evening With John Cleese... or How to Finance Your Divorce (Uma Noite Ridícula com John Cleese... Ou Como Financiar o Seu Divórcio). Em ambas, o título tem uma conotação literal: Cleese meteu-se nisto das tours a solo, de facto, para cobrir os 12 milhões de libras do acordo de divórcio com a terceira ex-mulher, Alyce Faye Eichelberger, e agora com a provecta idade de 82 anos é normal que o comediante inglês considere fechar o capítulo da stand-up nos palcos, para se dedicar à escrita, que sempre disse ser o que mais gostava.

Falar de John Cleese implica falar dos Monty Python - isso serve para qualquer membro do grupo nascido no domingo à noite de 5 de outubro de 1969, na forma de um entretenimento revolucionário chamado Monty Python"s Flying Circus (ou, em português, Os Malucos do Circo). Mas, de todos, Cleese será o menos apegado à identidade coletiva Python. Foi ele quem deixou o sexteto ao fim da terceira temporada dessa famosa série de sketches, antes de mais, por sentir que o projeto estava a tomar demasiado tempo da sua vida ("dez meses e meio por ano"), e depois porque o material criativo acusava cansaço: "Chegáramos a um ponto em que tudo o que fazíamos começava a derivar daquilo que fizéramos inicialmente. Não via o interesse de fazer aquilo, a não ser que fôssemos pobres e precisássemos do dinheiro", lê-se em Os Monty Python - Autobiografia. As voltas que a vida dá...

Alimentando esta vontade de progredir, e de manter um certo sentido de autonomia, Cleese sobreviveu lindamente a solo com o grande sucesso Fawlty Towers (1975-79), a britcom coassinada com a então esposa Connie Booth, onde interpreta o incompetente snobe proprietário de um pequeno hotel, e o filme Um Peixe Chamado Wanda (1988), cujo argumento escrito a meias com o realizador Charles Crichton lhe valeu uma nomeação para Óscar, contando com outro Python no elenco: Michael Palin.

Mais coisa menos coisa, a sua carreira individual no cinema tem passado muito por pequenos papéis, como Q, na saga James Bond, ou Nearly Headless Nick, em Harry Potter. E nos últimos anos essa tendência acentuou-se em produções particularmente esquecíveis, que parecem apenas tirar capital da sua presença. Exemplo de Clifford - O Cão Vermelho, a última vez que o vimos num filme estreado nas nossas salas, onde surge como um simpático velho sábio que resgata animais mágicos.

Longe estão os tempos do regresso ao bom espírito de grupo, que deu origem a três gloriosos momentos cinematográficos: Monty Python e o Cálice Sagrado (1975), A Vida de Brian (1979) e O Sentido da Vida (1983). Após a morte de Graham Chapman, em 1989, já não havia muito a acrescentar ao legado Monty Python. Em 2014, os restantes elementos, John Cleese, Michael Palin, Eric Idle, Terry Gilliam e Terry Jones (falecido em 2020), protagonizaram um dos maiores acontecimentos desse ano, juntando-se para uma série de espetáculos de despedida - Monty Python Live (Mostly) - no O2 Arena, em Londres. No mesmo ano, Cleese lançava uma autobiografia que não inclui as memórias do grupo, para lá do seu contexto de formação, mas que ainda refere esta reunion como uma boa ocasião para se certificar de que tudo o que é bom acaba. Mais uma vez: ele nunca foi romântico em matéria pythonesca.

Gostava de se chamar Jack Cheese. Já o disse várias vezes. Cheese (queijo) era, com efeito, o seu nome original de família. O pai decidiu mudar o apelido antes de entrar para o exército em 1915, com o óbvio intuito de prevenir possíveis piadolas. Mas John Cleese preferia que não o tivesse feito. Em parte, porque, antes de se tornar uma celebridade, as pessoas simplesmente não atinavam com o apelido e ele passava a vida a soletrá-lo. "Tinha uma tia que não mudara de nome. Ficou Dorothy Cheese, vivia ao pé de nós e eu gostava muito dela."

Certamente que não viveu muito tempo ao pé dessa tia, porque as constantes mudanças de casa dos pais, na região sudoeste do Reino Unido, criou uma instabilidade definidora da sua infância e adolescência. Era tímido, sofria de excesso de proteção e descobriu no humor uma arma de conquista, como conta em Os Monty Python - Autobiografia: "Tenho recordações muito específicas de ter feito a turma rir logo a seguir a entrar para a escola preparatória, e de ganhar popularidade e aceitação por ser engraçado. Percebi que é uma sensação agradável fazer rir. As pessoas só se riem se, basicamente, gostarem de nós e nos aceitarem. Acho que foi essa a minha forma de me tornar mais popular, uma vez que, sendo filho único de pais mais velhos, as minhas capacidades sociais começaram por ser diminuídas."

Portanto, o problema de Cleese não foi o pai nem a escola. A peça fundamental para desmontar a psicologia do comediante é a mãe, que viveu até aos 101 anos. Segundo o próprio relata no livro de memórias Ora, Como Eu Dizia..., a senhora Muriel era um caso muito complexo, uma pessoa dada aos extremos do incómodo (perturbava-a "sinos de igreja, carros dos bombeiros, autocarros e camiões, trovões, gritaria, automóveis grandes, a maioria dos automóveis de tamanho médio, automóveis pequenos e ruidosos..."). A ponto de um dia o filho, não aguentando mais, lhe ter dito o seguinte: "Conheço um homenzinho que vive em Fulham e, se ainda te sentires assim para a semana, e se quiseres, posso falar com ele, mas só se quiseres... e ele pode vir a Weston e matar-te." Foi um golpe de mestre: a mãe desatou a rir depois de uma pausa de silêncio, o que acabou por confirmar não só os dotes humorísticos de John, como selar uma prova de amor através de uma gargalhada.

Ainda assim, não se trata propriamente de uma história com final feliz. Cleese ficou marcado pela mãe na relação com as mulheres. Se lhe perguntarem, é o primeiro a associar os seus quatro casamentos a este exemplo familiar, que fomentou nele um estado permanente de alerta. Com um pezinho no campo da psicoterapia, assinou mesmo dois livros de autoajuda com o psiquiatra Robin Skynner - Families and How to Survive Them e Life and How to Survive It -, onde reflete também sobre o exercício da comédia. Agora, ao lado de Jennifer Wade, a atual parceira, diz ter encontrado uma sintonia e intimidade no riso. É quanto lhe basta para viver o resto dos dias. Isso e escrever, na companhia dela e dos gatos.

Há muito que John Cleese se apercebeu de que a paisagem do humor mudou. Aquilo que os Monty Python fizeram em 1969 já não seria possível fazer hoje, devido à vigilância do politicamente correto. Como tem dito em entrevistas, considera que não vivemos tempos de grande comédia, e a juntar-se a isso, a juventude está cada vez menos curiosa, dificilmente aberta a uma piada Monty Python. O seu descontentamento em relação a essa postura normativa é tão vincado que já o levou a cancelar espetáculos e conferências, por identificar pressões nesse sentido.

Ora, para refrescar o sentido de humor, pegue-se na mais conhecida das suas rábulas: o papagaio morto. Um cliente (Cleese) entra numa loja de animais e reclama ao vendedor (Palin) que este lhe vendeu um papagaio defunto. O vendedor limita-se a insistir que o pássaro não está morto, enquanto o homem se desmancha em vocabulário para traduzir a evidência à frente dos seus olhos: "Ele apagou-se e foi-se encontrar com o Criador. É um cadáver. Não tem vida, descansa em paz. É um ex-papagaio...". Adaptando este sketch, Cleese, o ex-aluno de Direito de Cambridge que começou com Graham Chapman a aventura da comédia, escreveu um memorável discurso fúnebre para o amigo, onde se ouve a certa altura: "Sinto que devo dizer: "Nonsense. Boa viagem para ele, o sacana parasita! Espero que frite." E a razão pela qual achei que o devia dizer é que ele nunca me perdoaria se não o fizesse, se desperdiçasse esta oportunidade de vos chocar em seu nome. (...) Ele é um ex-Chapman."

É o exemplo perfeito de como John Cleese lida com a morte, dando um pontapé no politicamente correto. Noutro sketch mortal, o da "piada mais engraçada do mundo", ele é um dos fulminados pelo riso. Esperamo-lo agora bem vivo, antes de morrer, e com um nível de provocação tão alto como o seu 1,96m de estatura.

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