Joana Espadinha: “Existe muita vulnerabilidade quando se está em palco”
Joana Espadinha continua a apresentar ao vivo o novo disco Vergonha na Cara, um trabalho bastante pessoal e autobiográfico, como todos os anteriores da cantora, que agora regressa até à sua adolescência - e não só. Trata-se, como a própria admite nesta entrevista ao DN, de um trabalho de duas partes distintas, influenciado pelos ambientes retro dos velhos discos de vinil de folk e de country, mas no qual também não faltam algumas pérolas pop bem ao estilo da artista, que cumpre este ano um década de carreira.
Os seus discos são sempre muito pessoais e autobiográficos, mas neste vai um pouco mais atrás, até à adolescência. Porquê essa opção?
Isso é um dos aspetos em que sinto mais diferença quando escrevo para outros artistas ou quando escrevo para mim. Quando o faço para outros, tento sempre colocar-me na pele dessas pessoas, mas, ainda assim, reconheço que haverá sempre algo meu, do ponto de vista pessoal, nessa música. Portanto, quando o faço para mim, nos meus discos, não tenho qualquer escapatória [risos]. No caso deste álbum, [ele] viaja até à minha adolescência, porque creio que a maior parte da nossa vida é passada a resolver questões da adolescência, que é um período tão importante e tão definidor da nossa personalidade. É algo muito comum nos meus discos, essa viagem ao passado. E até já me aconteceu não querer que fosse autobiográfico, mas depois tudo o que estava na canção acabou mesmo por acontecer. Senti que, mesmo sem querer, era evidente que estava a falar de mim.
Tem também um lado mais feminista, igualmente muito comum na sua música…
É uma questão importante, porque a palavra feminismo induz muitas vezes em erro, como se fosse uma batalha entre sexos, quando na verdade é apenas um movimento que procura a igualdade. E para se conseguir isso, por vezes, é necessário equilibrar alguns aspetos desequilibrados à partida. É por ser um princípio de justiça que continua tão vivo, pois ainda há muito por fazer para se atingir essa igualdade. Por outro lado não pode ser apenas um slogan, tem de ser algo que fale da vida das mulheres, de todas as realidades que existem. No fundo trata-se apenas de ter liberdade de escolha, sendo que todas as escolhas põem ser válidas, sem se impor nada a ninguém. No meu caso só posso falar da minha vida, de como tem sido ser artista. E no caso das artistas femininas há sempre uma pressão extra com a imagem, com o saber envelhecer, seja lá isso o que for. Se fazemos plásticas somos fúteis, se não fazemos estamos estragadas… Há sempre uma pressão constante, que é muito mais presente no universo feminino, tal como a questão da maternidade, que ainda tem muitos desequilíbrios. Mesmo eu, que tenho a sorte de dividir praticamente tudo, há sempre situações que não são iguais para os dois progenitores.
Outra temática abordada, nomeadamente no tema Alibi, é a futilidade e imediatismo das redes socais. Prefere dar-se a conhecer através da música, é isso?
É isso mesmo. Lido com muita dificuldade com essa realidade e fiz essa canção para assumir isso mesmo. E, ao mesmo tempo também, sinto que sou incoerente, porque estou a tentar libertar-me da necessidade de agradar aos outros e de passar a confiar mais nos meus instintos, mas a redes sociais, que também têm coisas boas - como aproximar-nos do nosso público -, alimentam-se da nossa necessidade de validação. E isso não tem fim, o que acaba por ser muito perigoso em termos de saúde mental, especialmente para os adolescentes, mas não só. Eu própria me sinto muito dividida. Por vezes não me apetece partilhar algo, mais pessoal ou assim, mas depois dou por mim a pensar que tenho de alimentar as redes, para o algoritmo não se esquecer que existo [risos]. Para os artistas, hoje em dia, é obrigatório ter presença nas redes sociais, porque infelizmente a maior parte das pessoas consome a cultura dessa forma. Mas para me conhecerem, de facto, não há nada melhor do que ouvirem as minhas canções.
Como é que a adolescente tímida que é dada a conhecer neste disco lida com a exposição em palco e através da música?
A parte da escrita é um processo muito terapêutico, porque vou pensando e verbalizando coisas que nunca tinha dito em voz alta. Já a parte do palco é um bocadinho diferente.
Mas não deixa de ser outro tipo de exposição…
Sim, porque existe muita vulnerabilidade. E há ainda um fator de risco que não controlamos e temos de aceitar que não o controlamos. É como quando saltamos de paraquedas e temos de confiar que o paraquedas vai mesmo abrir. No meu caso, abdicar do controlo foi muito importante, para conseguir assumir parte dessa vulnerabilidade. A partir daí, é necessário encontrar um equilíbrio, porque a pessoa não pode estar tão vulnerável que não consiga cantar. Ou seja, cabe ao artista encontrar as ferramentas certas para desempenhar esse papel em segurança. A primeira canção deste disco, Nascer do Zero, fala exatamente sobre esse momento de transformação: “Ainda agora era só a Joana e agora tenho de estar aqui no palco a ser maior do que sou.” Mas, ao mesmo tempo, isso também nos revela algumas capacidades que desconhecíamos ter, o que nos dá um grande empoderamento.
Este é um álbum de ambientes retro, que até tem uma espécie de dois lados completamente diferentes, como nos velhinhos discos de vinil. Porquê este formato?
É verdade. Na minha carreira tenho-me dedicado mais ao pop, mais açucarado, e tenho algumas canções assim neste disco, como o Será o Que Será, mas por outro lado, no meu primeiro disco, Do Avesso, tinha canções mais sombrias e melancólicas, que davam mais espaço à voz. Eu gosto muito de estilos musicais como o country ou o folk, que permitem isso, e tinha muitas saudades de fazer canções com essa atmosfera. E quando estava a trabalhar no disco com o António Vasconcelos Dias, que foi o produtor, chegámos rapidamente a essa conclusão, que havia dois lados bastante bem definidos no álbum, um mais pop e outro mais folk, com mais espaço para a voz e para as palavras. E a ideia de o assumir até partiu dele.
O que trouxe a produção do António Vasconcelos Dias à sua música?
Muita coisa. Ele começou por ser diretor musical deste projeto e percebi logo que, além de ser muito talentoso, é uma pessoa com quem é fácil trabalhar. E também é muito minucioso: escolheu os instrumentos para cada música, os arranjos, tudo. É uma pessoa que gosta muito de música, temos algumas referências em comum, como a música americana, mas ele acabou por me mostrar muitas coisas novas, o que acabou de facto por influenciar muito este disco. Hoje posso dizer que somos bons amigos e, quando dá gosto trabalhar com as pessoas, o tempo acaba por passar depressa.