O filme podia chamar-se "Julie que terá 30 anos no ano 2021", como o de Alain Tanner sobre um Jonas que teria 25 no ano 2000. Julie (Renate Reinsve) é o centro das atenções em A Pior Pessoa do Mundo, uma jovem mulher que tropeça nas próprias decisões à medida que se aproxima da idade crítica. Ela encontra alguma estabilidade quando se muda para o apartamento do namorado, um artista de BD de 45 anos, mas algum tempo depois sente-se beliscada pela frescura de uma nova paixão. Sob o céu de Oslo, Joachim Trier, de 47 anos, assinou o seu melhor filme da última década. Uma proeza que primeiro fez bater os corações em Cannes, valendo a distinção da magnética Reinsve, e esta semana acumulou duas nomeações aos Óscares: melhor argumento original e melhor filme internacional..Sob o invólucro da comédia romântica - para saborear como um vinho pouco maduro que revela melancólicas notas aromáticas no final -, faz-se também a análise à sociedade moderna, sem gastar demasiada energia nos "temazinhos", antes incorporando-os na intimidade fantasiosa de Julie. É esse rasgo interior que permite sequências como aquela em que o tempo pára, com um simples toque de interruptor, e ela corre pelas ruas de Oslo movida por um impulso romântico, ou a outra em que consome cogumelos mágicos. Na nossa conversa via Zoom com o realizador norueguês, fica claro que lhe interessa sobretudo o poder do cinema como ferramenta de antropologia. E "estudar" Julie é um prazer..Temos esta conversa poucos dias depois de se saber que A Pior Pessoa do Mundo está nomeado para dois Óscares. Como é que se sente em relação a este duplo feito? Estou muito grato e agradavelmente surpreendido, porque tenho trabalhado sempre com o meu coargumentista, Eskil Vogt, desde a minha primeira curta-metragem, quando tínhamos ambos 21 anos, na década de 1990 - somos os melhores amigos e colaboradores -, e de repente estamos nomeados para um Óscar! Esta ideia de que vamos estar lado a lado, nervosos e de smoking, numa cerimónia em Hollywood, tem muita graça....Este é um filme com um registo um pouco diferente dos seus anteriores. Quando escreveu o argumento com Eskil Vogt, a ideia da comédia romântica veio nesse processo ou já a tinha em mente? É uma mistura das duas coisas. Eu queria regressar ao espírito da nossa primeira longa-metragem, Reprise [2006], que, de alguma maneira, era mais cómica. Queria voltar às origens e tentar - agora que estamos mais velhos - fazer algo mais romântico e divertido. Mas depois, à medida que íamos escrevendo, acabámos por chegar também a um filme bastante sério. Por um lado, começa como uma comédia romântica, mas por outro ganha contornos de drama sobre a passagem do tempo, a mortalidade, e o modo como o sentido da perda nos molda na compreensão de quem somos..A protagonista, Julie, tem uma personalidade sui generis, mas ao mesmo tempo identificamos nela algo universal - a "irresolução" característica de muitas mulheres de 30 anos. Como é que chegou à fórmula, digamos assim, desta personagem? Penso que a condição do realizador é ser, antes de mais, um verdadeiro observador de pessoas. É preciso ter empatia com as personagens que criamos e encontrá-las dentro de nós, ainda que possam ser muito diferentes de quem somos. Por isso, no princípio, acho que se tratou de uma combinação desses aspetos. Mas sobretudo temos a Renate Reinsve, que tinha uma única linha de diálogo num filme que fiz há 10 anos, Oslo, 31 de Agosto [2011], e a quem nunca tinham oferecido um papel principal em cinema. A certa altura dei comigo a pensar "é isso! Posso escrever-lhe uma personagem a sério!" E foi o melhor que nos aconteceu..O que é que a indecisão de Julie diz sobre a vida contemporânea? Pergunto isto porque o filme mostra este quotidiano de excesso de informação e o modo como a nossa forma de estar passa por uma espécie de vigilância social... Essa é uma excelente pergunta. Muita da informação que estamos a acumular está amarrada a um sentido de autorrepresentação ou a uma mediação da nossa identidade. As pessoas sentem a pressão do que a sociedade espera delas, tanto a nível profissional como na vida amorosa e no constituir família. Acho que mais do que nunca temos de ficar muito conscientes de que isto são escolhas; eu posso andar confuso de um lado para o outro, ter dúvidas sobre a minha identidade em determinado momento da vida, e isso não tem de ser necessariamente mau..Porquê a disposição do filme em 12 capítulos? A estrutura em capítulos deu-me uma certa liberdade para jogar com diferentes emoções num só filme. São peças com nuances de tom e de humor que conduzem o espectador ao longo do tempo para contar uma parte importante da vida de alguém. E a partir daí penso que se estabelece um contrato com o público..Um dos aspetos mais interessantes é a forma como Julie, no fundo, se encaminha para o seu próprio espaço, depois de ter passado pelos apartamentos dos namorados. Lembrou-me o livro de Virginia Woolf, Um Quarto Só Para Si. Curiosamente, quando estávamos no processo de escrita, tínhamos títulos próprios para nos ajudar a concentrar num determinado ponto do filme, e essa parte intitulou-se mesmo "um quarto só para si"... Esse maravilhoso ensaio de Virginia Woolf é sobre a necessidade de haver um quarto na casa para a mulher poder trabalhar; no caso da autora, para escrever. E quis pegar nessa noção simbólica porque existe também um "quarto interior", o da autoaceitação na cultura moderna, que é preciso alcançar. Todos nós precisamos de um quarto interior só nosso..A certa altura, uma das personagens diz ter saudades do tempo em que "a cultura era transmitida por objetos". E temos a sensação, pela textura visual dos 35mm, que o próprio realizador aprecia o valor "físico" do cinema... Exato, filmo em 35mm. Acredito que uma das razões pelas quais faço filmes é a tentativa desesperada de registar, captar e controlar a realidade que nunca vou alcançar. E acho também que reivindicamos os objetos, na cultura, porque eles nos ligam uns aos outros. No entanto, são "só" objetos - nós vamos morrer e eles serão abandonados. Por isso se vislumbra a melancolia numa estante de livros e numa pilha de DVDs... Mas, mais uma vez, trata-se também de uma metáfora para tudo o que temos dentro de nós mesmos, as nossas memórias. Esta é uma específica melancolia geracional..E qual é o sentido - travesso, digo eu - do título do filme? É uma força de expressão que os noruegueses usam muito. O título vem dessa ironia da autodepreciação, do "quem me dera ser melhor". E depois, sim, também achei divertido chamar a um filme romântico "A Pior Pessoa do Mundo", porque é obviamente o oposto do que se procura numa relação..dnot@dn.pt