Jessica Chastain a caminho do seu primeiro Óscar 

<em>Os Olhos de Tammy Faye </em>evoca de modo subtil uma figura emblemática da história agitada das igrejas evangelistas dos EUA. Não será arriscado supor que a interpretação de Jessica Chastain lhe vai valer o Óscar de melhor atriz.
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Num tempo de tão chocante desvalorização social do pensamento crítico, recordemos uma verdade rudimentar do campo cinematográfico: o trabalho do crítico, seja qual for o grau do seu talento, não se confunde com a pueril "adivinhação" do que quer que seja - a começar pelos possíveis vencedores dos próximos Óscares (na madrugada de domingo para segunda-feira, em Los Angeles).

O que não impede a suposição de que, graças à sua prodigiosa composição em Os Olhos de Tammy Faye (Disney+), Jessica Chastain irá arrebatar a estatueta dourada de melhor atriz. Não se trata de um palpite pessoal (irrelevante, para todos os efeitos), mas sim do resultado de diversas análises de jornalistas dos EUA - nomeadamente em The Hollywood Reporter e Variety, ou no site Gold Derby -, conhecedores diretos das dinâmicas internas da indústria de Hollywood.

Jessica Chastain tem assim a terceira nomeação para um Óscar, depois de The Help/As Serviçais (2011), de Tate Taylor, neste caso como secundária, e Zero Dark Thirty/00:30 A Hora Negra (2012), de Kathryn Bigelow. Sem esquecer, claro, que a sua filmografia inclui títulos tão admiráveis como A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, Miss Julie (2014), de Liv Ullmann, ou Jogo da Alta Roda (2017), de Aaron Sorkin.

Dir-se-ia que ela possui essa "duplicidade" dramática que, noutros tempos, distinguiu atrizes como Katharine Hepburn ou Bette Davis: uma clássica aura de estrela (com ela, a expressão "star power" volta a ter sentido) e uma invulgar, por vezes desarmante, capacidade de transfiguração que a faz escapar a qualquer estereotipo ou "imagem de marca". Assim acontece a interpretar a personagem, nada óbvia, afinal misteriosa, de Tammy Faye (1942-2007).

No imaginário popular dos EUA, a figura de Tammy Faye surge como protagonista de um capítulo fulcral na história das igrejas evangelistas. É um capítulo visceralmente televisivo, uma vez que, com o seu marido Jim Bakker (interpretado pelo também magnífico Andrew Garfield), ela criou o programa The PTL Club, verdadeiro "talk show" de evangelização emitido ao longo de 14 temporadas, entre 1974 e 1989 (PTL: "Praise the Lord", "Louvado seja Deus").

A vida de Tammy Faye contém uma avalanche de elementos suscetíveis de transformar a respetiva evocação num rol de peripécias caricaturais ou num inventário dos escândalos a que, inevitavelmente, o seu nome surgiu associado. Primeiro, porque a exuberância e a lógica de "entertainment" das suas aparições públicas - foi também cantora, tendo gravado cerca de duas dezenas de álbuns - a definem como uma entidade "kitsch", bizarra e desconcertante; depois, porque The PTL Club foi objeto de um inusitado desenvolvimento financeiro, incluindo a criação do Heritage USA ("parque temático cristão", encerrado em 1989), numa teia de esquemas fraudulentos que levaram Jim Bakker à prisão.

Numa entrevista dada ao Gold Derby (disponível no YouTube), Abe Sylvia, responsável pelo extraordinário argumento de Os Olhos de Tammy Faye, define de forma exemplar uma regra de trabalho que, em boa verdade, contamina todos os aspetos do filme. A saber: a definição da personagem central através de um princípio de partilha de amor por todos os seus semelhantes. Isso não exclui que o seu enriquecimento tenha acontecido em paralelo com a ação do marido, mas também não a reduz a um ícone parado no tempo. Por vezes, a sua ação desafiou mesmo os preconceitos da sua igreja: recordando a adolescência em que escondeu a sua própria homossexualidade, Abe Sylvia evoca o afeto de Tammy Faye pela comunidade gay, aliás explicitado numa lendária entrevista televisiva, em meados da década de 80, com Steve Pieters, homossexual, pastor cristão, atingido pela sida.

Surpreendente em tudo isto é o misto de contenção e contundência da realização de Michael Showalter, ele cuja carreira tem passado sobretudo pela televisão, com algumas derivações cinematográficas, incluindo a curiosa comédia romântica Amor de Improviso (2017). Os Olhos de Tammy Faye possui, aliás, as qualidades de um modelo de biografia em que a cuidada contextualização histórica das personagens e da sua ação - lembrando, por exemplo, o papel dos evangelistas na eleição de Ronald Reagan - evita sempre a sua redução a "símbolos" parados no tempo. Abe Sylvia diz isso mesmo, lembrando como era importante que as personagens não surgissem "como se já conhecessem o seu lugar na história".

A composição de Tammy Faye por Jessica Chastain é tanto mais complexa quanto o filme contorna todas as possibilidades de determinismo dramático, resistindo a qualquer demonização da personagem, mas também recusando tratá-la como expressão de uma inocência desligada dos factos e da época da sua história. Nesta perspetiva, creio que importa não confundir as suas componentes teatrais com a escrita do próprio filme: Os Olhos de Tammy Faye é um objeto de um realismo intransigente e, afinal, fora de moda.

dnot@dn.pt

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