Jane Birkin em A Piscina, um enorme sucesso da produção francesa de 1969.
Jane Birkin em A Piscina, um enorme sucesso da produção francesa de 1969.

Jane Birkin. Uma família feita de muitos filmes

Jane Birkin é um nome que associamos a filmes que vão desde os tempos heróicos da Nova Vaga até à dimensão confessional que as memórias documentais podem conter. A partir de amanhã, o Batalha Centro de Cinema, no Porto, propõe um ciclo para descobrirmos um pouco da sua trajectória criativa.
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Em 1968, Jane Birkin e Serge Gainsbourg conheceram-se durante a rodagem do filme Slogan, realizado por Pierre Grimblat, sobre o romance de um homem de 40 anos com uma mulher quase vinte anos mais nova do que ele. Se cada destino não é estranho a algum apelo lendário, como num espelho, então Slogan foi o capítulo zero da história amorosa de Jane e Serge, pontuado, logo no ano seguinte, por uma canção que ele compôs e ela cantou, intitulada Jane B. O nome abreviado regressa, agora, num sugestivo ciclo proposto pelo Batalha Centro de Cinema, no Porto: “Quem És Tu, Jane B.?” Começa amanhã (21h15) com A Piscina (1969), de Jacques Deray, filme em que ela contracena com Romy Schneider e Alain Delon, prolongando-se até 22 de fevereiro (19h15), com Kung Fu Master! (1988), de Agnès Varda.

Não é uma retrospectiva, já que, naturalmente, menos de uma dezena de filmes não pode esgotar os altos e baixos de uma carreira que, entre cinema e televisão, se reparte por quase uma centena de títulos. Além do mais, cada filme parece rasgar um novo território de (re)descoberta, quanto mais não seja porque, como se escreve no site do Batalha, Jane Birkin foi “actriz, realizadora, cantora, compositora, modelo e activista” — ela que se tornou a “mais francesa das inglesas”, persiste como “símbolo de erotismo e liberdade, inocência e controvérsia.”

Talvez possamos acrescentar que tudo isso não é estranho a um pudor, de uma só vez familiar e profissional, que constitui, aliás, um dos temas fulcrais do documentário Jane por Charlotte (não incluído neste ciclo, disponível no videoclube da Zero em Comportamento), realizado pela filha, Charlotte Gainsbourg, e revelado no Festival de Cannes de 2021 — Jane Birkin faleceu no dia 16 de julho de 2023, contava 76 anos.

Ser ou não ser feliz

A Piscina ocupa um lugar central na filmografia da actriz (terá uma segunda projecção, dia 31 jan., às 15h15). Seja como for, Jane Birkin surge num papel secundário, já que o argumento se centra num par romântico — na época, a expressão envolvia as cumplicidades simbólicas de vida vivida e vida filmada — que Alain Delon e Romy Schneider representam como uma aliança sensual entre os corpos e as almas.

Com alguma ironia, a sua breve participação numa cena do clássico Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni, valeu-lhe uma visibilidade, tingida de “escândalo”, que A Piscina não iria repetir. Aí, na companhia de Gillian Hills, actriz que teria um pequeno papel em Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, Jane Birkin enfrentava a câmara do fotógrafo interpretado por David Hemmings numa cena coreografada como um pequeno bailado erótico. A nudez dos corpos foi assunto eleito por tablóides & Cª, para o melhor ou para o pior reflectindo os sobressaltos narrativos de um tempo em que a exposição dos corpos e, sobretudo, as representações da sexualidade geravam polémicas que iam do jornalismo à filosofia.

Vale a pena recordar que, por essa altura, mais precisamente em 1965, a cineasta que foi o símbolo feminino da Nova Vaga francesa, Agnès Varda, ecoava tudo isso num filme belíssimo e radical, hoje em dia ignorado (porque raramente mostrado) dos espectadores mais novos: A Felicidade, “romance” que consumava a metódica decomposição das ilusões que o território familiar pode gerar. Jane Birkin não estava nesse filme, mas, passadas mais de duas décadas, viria a ser dirigida por Varda no já citado Kung Fu Master! — a sua (também) familiaridade envolve uma singular energia afectiva.

Em boa verdade, Kung Fu Master! é mesmo um filme nascido de vários cruzamentos de famílias, a começar pelo facto de Jane Birkin e Charlotte Gainsbourg se encontrarem aqui, enquanto personagens, como mãe e filha. A personagem que desequilibra a situação (ou será uma nova forma de equilíbrio?) é um jovem, colega da filha, que estabelece uma relação passional (ou será apenas uma forma pueril de curiosidade?) com… a mãe. Com um pormenor que poderia, ou poderá, suscitar alguns jogos psicanalíticos: o intérprete desse jovem que parece fundir a transparência emocional e o mistério existencial é Mathieu Demy, filho de Varda e Jacques Demy, outro nome sagrado da Nova Vaga.

Memórias de Veneza

No programa de “Quem és Tu, Jane B.?” encontramos também Wonderwall (1968), de Joe Massot (21 jan., 17h15), e Dust (1985), de Marion Hänsel (8 fev., 19h15), ambos reflectindo momentos históricos muito específicos do cinema e das sociedades. O primeiro acontece na Swinging London de meados dos anos 60 (tal como Blow-up), tende para o delírio psicadélico e, seguramente não por acaso, tem uma banda sonora composta por George Harrison. O segundo baseia-se no romance No Coração desta Terra, de J.M. Coetzee (ed. Dom Quixote), nasce de um turbilhão de dramas em que o imaginário ocidental se cruza com os fantasmas do colonialismo — a acção decorre na África do Sul, em pleno Apartheid —, numa vertigem de peripécias que corresponde, afinal, à desmontagem de todo um imaginário familiar, indissociavelmente político.

Tendo tudo isto em conta, apetece dizer que o núcleo vital do ciclo organizado pelo Batalha está nos dois títulos realizados pela própria Jane Birkin. São eles Boxes (2007) e Souvenirs of Serge (2011) — serão exibidos, respectivamente, nos dias 11 e 17 de fevereiro, ambos às 17h15 — e condensam essa ideia, sentimental e programática, segundo a qual os filmes nos projectam na familiaridade dos eventos mais íntimos, ao mesmo tempo revelando a estranheza que os pode envolver ou, no limite, decompor.

Boxes poderá ser classificado como uma ficção autobiográfica, expressão que, por si só, sublinha as ambivalência de qualquer auto-retrato. Nele encontramos a personagem de Anna, interpretada pela realizadora, numa colagem de capítulos que ecoam histórias e vivências muito pessoais. É um ajuste de contas com o passado, não num sentido moralista, antes como formulação existencial: “Quais as minhas memórias mais secretas e como posso continuar a viver, não as excluindo, mas aceitando-as?” No elenco encontramos veteranos como Michel Piccoli, Geraldine Chaplin ou Annie Girardot, e também, na sua estreia cinematográfica, a muito jovem Adèle Exarchopoulos, consagrada alguns anos mais tarde, em Cannes, com A Vida de Adèle (2013).

Quanto a Souvenirs of Serge, será o mais simples de toda esta lista, apesar disso (ou justamente por causa disso), o mais complexo testemunho que Jane Birkin nos legou. Como o título sugere, são imagens da vida privada com Gainsbourg. Registadas em genuínos “filmes de família” (no formato Super 8), são imagens acompanhadas pela voz off da própria realizadora, numa deambulação tecida de palavras confessionais, em tom de sereno pudor. São “bocadinhos de uma vida estranha”, desembocando numa viagem a Veneza, quando faltava menos de um ano para a separação do casal, em 1980 (Serge Gainsbourg morreu em 1991, contava 63 anos). Como ela diz: “É um flashback”, ou seja, estamos sempre dentro de um filme.

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