Não se pode dizer que, no mercado português, a Nova Vaga francesa seja um capítulo ignorado da história do cinema. De Jean-Luc Godard a Eric Rohmer, passando por François Truffaut, Jacques Demy, Claude Chabrol ou Jacques Rivette, conhecemos as singularidades dos seus filmes, sabendo também da importância transformadora das suas experiências ao longo da década de 1960 — até porque, para lá do continuado trabalho de divulgação da Cinemateca Portuguesa, ao longo dos últimos anos tem havido várias hipóteses de reencontro com esses filmes nas salas do circuito comercial, em particular através da acção dos chamados distribuidores independentes. Em qualquer caso, faltava acertar algumas contas com a obra de Jacques Rozier (1926-2023).Dizer que essa obra estava esquecida será, talvez, excessivo. O certo é que as suas cinco longas-metragens, a começar por esse título lendário que é Adeus Philippine (1962), permaneciam comercialmente inéditas entre nós. Até agora. Isto porque, a partir de quinta-feira, a Leopardo Filmes lança essas longas-metragens em cópias restauradas (mais duas curtas) em Lisboa (Cinema Nimas) e Porto (Teatro do Campo Alegre), num ciclo que passará também por outras cidades, incluindo Coimbra, Figueira da Foz, Setúbal e Braga.Pouco tempo depois da morte de Agnès Varda, em 2019, Godard evocava o seu legado numa entrevista à Radio Télévision Suisse, lembrando que só restavam dois nomes da Nova Vaga: ele próprio e Rozier (viriam a falecer em 2022 e 2023, respectivamente). Era mais do que um pensamento nostálgico. Afinal de contas, ainda que sem obter o impacto crítico e mediático dos títulos “fundadores” da Nova Vaga — incluindo Os 400 Golpes (Truffaut), Hiroshima, Meu Amor (Alain Resnais) e O Acossado (Godard), lançados em 1959/60 —, Adeus Philippine ficou inscrito na história da Nova Vaga também como exemplo modelar de uma contagiante liberdade formal e narrativa..À flor da peleA sinopse de Adieu Philippine pode ajudar-nos a perceber o contexto muito particular, tanto no plano cinematográfico como em termos históricos, em que o filme surgiu. Assim, a personagem central, Michel (Jean-Claude Aimini), é um jovem que trabalha em televisão, num contexto muito particular de consolidação do poder e do consumo (ou do poder consumista) do pequeno ecrã — e, mais do que nunca, faz sentido sublinhar que a postura cinéfila da Nova Vaga combateu a formatação das imagens (e sons) que começava a ser imposta por algumas linguagens televisivas.Michel é um jovem que pertence à geração que está a ser mobilizada para a guerra da Argélia. O filme é particularmente discreto na forma como sugere o pano de fundo político da França no começo da década de 1960, o que, paradoxalmente, reforça a expectativa que, como um vírus dramático, envolve e contamina a personagem de Michel. Aliás, a partir do momento em que ele se relaciona com Liliane (Yveline Céry) e Juliette (Stefania Sabatini), começando por deixá-las entrar no estúdio em que está a trabalhar, a "imagem" da guerra está sempre presente, de algum modo reforçada pela decisão romântica, ma non troppo, de partir para a Córsega para aproveitar “o tempo que resta”...Curiosamente, Adieu Philippine é contemporâneo de Le Petit Soldat/O Soldado das Sombras, de Godard, outro título marcado por referências à guerra da Argélia. Aliás, o filme de Godard, rodado logo após O Acossado, era bastante mais explícito em relação aos efeitos convulsivos da guerra na sociedade francesa, tendo sido mesmo interdito pela censura estatal — seria estreado apenas no começo de 1963, já depois das primeiras exibições de Adieu Philippine.A visão do mundo de Rozier exprime-se, ou consolida-se, através de um naturalismo à flor da pele, sempre seduzido pela ilusão de algum romantismo. Nesta perspectiva, os seus filmes são também o resultado de uma nova conjuntura técnica — com recursos mais ligeiros de registo de imagem e som, adaptáveis a situações menos favoráveis de rodagem — em que a ficção adquire uma desconcertante ambiguidade física, sugerindo o ritmo de uma “reportagem” sobre os próprios actores.Assim volta a acontecer nos dois títulos que Rozier assinou na década de 70: As Praias de Orouet (1973) e Os Náufragos da Ilha Tortuga (1976). Tal como em Adieu Philippine, com a deambulação nas paisagens da Córsega, a saída das personagens para cenários “alternativos” sugere uma libertação algo anárquica que define o risco criativo, e também as fronteiras especulativas, do cinema de Rozier — no primeiro caso, para a região de Vendée na costa ocidental de França; no segundo, como diz o protagonista, procurando viver nas Caraíbas uma aventura “à maneira de Robinson Crusoé”. Que esse protagonista de Os Náufragos da Ilha Tortuga seja um empregado de uma agência de viagens parisiense, para mais interpretado por Pierre Richard (na altura muito popular em França graças a algumas comédias de sucesso), eis a ironia paradoxal que se instala entre o mundo do trabalho e uma certa ânsia de evasão ou libertação que já pontuava Adieu Philippine..A herança de RenoirCom Maine Océan (1986), uma produção de Paulo Branco com direcção fotográfica de Acácio de Almeida, dir-se-ia que o cinema de Rozier encontrou uma feliz solução de equilíbrio entre a “ligeireza” de execução e o seu ponto de fuga dramático. Podemos arriscar um rótulo para tal viragem: comédia do absurdo. Centrado num grupo de personagens que se cruzam num comboio, o filme é um caldeirão de acasos e ironias em que, no limite, cada ser humano não passa de uma máscara instável sempre à procura do seu duplo. Tudo isso ecoa na longa-metragem final, Fifi Martingale (2001), e tanto mais quanto, assumindo a herança de Jean Renoir, Rozier encena a sua “comédia humana” através do jogo de máscaras vivido por um grupo de actores de teatro.Paradoxo final, muito sugestivo, encontra-se nas duas curtas-metragens que o ciclo inclui: Paparazzi e O Partido das Coisas: Bardot/Godard, ambas de 1964, resultantes do acompanhamento da rodagem de O Desprezo (1963), de Godard — serão, aliás, programadas numa sessão “tripla”, integrando esse que é um dos títulos mais lendários da filmografia “godardiana”.Com uma câmara ágil, de olhar saltitante, Rozier propõe um retrato pedagógico em dois tempos: primeiro, expondo a histeria dos fotógrafos que perseguem, literalmente, Brigitte Bardot para obterem “a” fotografia que os seus editores exigem; depois, observando o misto de cumplicidade e distanciamento com que o cineasta e a sua estrela vivem as filmagens. Talvez possamos encontrar aí a “mensagem” exemplar de um autor que sempre encarou o cinema como a celebração de uma verdade humana que nasce, ou pode nascer, do artifício das imagens e dos sons.A herança cinéfila